E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, nos conta a história de um poeta com quem esbarrava. Talvez um poeta de calçada como o romântico nome de uma travessa (foto) no centro do Rio. Leia, mas saiba que o texto vai continuar numa próxima edição.
Poesia é quando uma emoção encontra seu pensamento e o pensamento encontra palavras (Robert Frost)
“Conheci o poeta assim acidentalmente. Esbarramo-nos lá na Letras UFRJ em uma disciplina do mestrado em dois mil e poucos. Ele era um cara engraçado. Usava um boina que o tornava meio uruguaio, sei lá; e tinha costeletas.
Ele filava os cigarros que fumava e não tinha dinheiro para o café, mas ai quem lhe pagasse um café que não fosse um expresso. Simplesmente ele se recusava a beber o café bom de muitos brasileiros no copo americano ou na xícara branca. Café? Só expresso, era o que ele parecia dizer.
Eu, que pela primeira vez conhecia um poeta de carne e osso, fazia-lhe as vontades. Tirava do bolso um cigarrinho e da carteira o dinheiro suficiente para dois expressos. Um pra mim, um pra meu amigo ali. Eu não tinha tanto dinheiro assim, mas eu não era besta de perder a oportunidade de falar de poesia com um poeta.
O poeta, cujo apelido era Gabão, tinha um metrônomo na cabeça. Era capaz de recitar Fernando Pessoa ininterruptamente para meu espanto – fico abismado com esses feitos de memória prodigiosa. Afora isso, Gabão era um sujeito de algumas ideias fixas e, para os padrões acadêmicos, um tanto excêntrico – para não dizer, um tanto maluco.
Gabão lia o meu material e não achava a cadência, o que me acendia um sinal de alerta. Ele não achava graça dos meus versos livres nem dos decassílabos que aprendi a fazer por intermédio de ninguém mais ninguém menos que Glauco Matoso. Não é para me gabar, não, Gabão, mas eu também versejava.
Certa vez Gabão me veio com um livrinho desses de poetas que oferecem seus versos em portas de museu. O produto não era de miméografo, não cheirava a álcool, mas de fotocopiadora. Em geral eu torço o nariz para esse tipo de material. Quando compro, eu dou uma olhadinha apenas para confirmar o que já sabia de antemão: não é a minha praia nem tampouco poesia é.
Entretanto, o material do Gabão era diferente, talvez por eu conhecer o poeta de fino trato, vá saber. É claro que além do cigarro e do café expresso, também banquei a aquisição do livrinho. E não é que até hoje guardei em mim os seguintes versos? “Naquela tarde de maio/ Quando eu me perdi”/ Ipanema, Ipanema/ Jamais serás a mesma”.
Digo guardei em mim porque o livrinho mesmo há muito eu perdi. É provável que o material tenha sido alvo de despejo em uma daquelas inúmeras arrumações que fazemos ao longo da vida, nós os acumuladores de livros e de papel. Nós abandonamos papel com quem troca de pele.
Como surgiu, Gabão também desapareceu na poeira de vento. Pelo que me conste, não terminou o mestrado, que, convenhamos, pode vir a ser uma camisa de força para a imaginação de muita gente. Talvez ele tenha se mudado para Portugal, talvez tenha sido internado em um hospício. Talvez, talvez. Gabão era poeta e vivia como tal. Sem garantias.
Onde está Gabão? Onde fica o Gabão? Sempre que vejo alguém de boina pelas ruas nas tardes de outono eu o vejo no Alentejo.
Musiquei os versinhos de “Naquela tarde de maio”sem o consentimento do autor. Não me arrependo. Paguei-lhe de café o suficiente para tomar posse dos direitos autorais. Música é que nem passarinho, é de quem pegar, já não dizia Sinhô? Além disso, para o bem ou para o mal, a canção não decolou. Não tocou nas rádios, não fez de mim conhecido nem na Beija-Flor nem em Paquetá nem em Ipanema.
Paciência, paciência. Pelo menos eu posso dizer que um dia eu conheci um poeta de carne e osso e fleugma. Um poeta que recitava Fernando Pessoa de cabeça sem perder a passada nem o ar. No máximo uma cuspidinha aqui e ali que nem jogador. Praticamente um heterônimo de Fernando Pessoa. Sim, me lembro agora, o nome dele era Luiz Fernando.
Entretanto, o motivo pelo qual os versinhos do Gabão vieram à tona justamente neste mês deixo para a crônica da semana seguinte. Deixo uma pista: maio é difícil para mim.
Feliz Dia das Mães para todos nós.”
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.