Por Walterson Sardenberg, jornalista
“Você quer tocar numa guitarra que era do Mick Taylor?”
Quem fez a pergunta, eufórico, foi um querido amigo, o publicitário Adriano Vanni. Assim como eu, um contumaz fã de blues rock. Ele me explicou: a preciosidade — uma Gibson semiacústica, modelo 355 TDW, americana, fabricada em 1966 — está sendo vendida em uma loja especializada na Rua Cristiano Viana, de Pinheiros. Ou no que restou do bairro paulistano, após os últimos anos de descabelada especulação imobiliária. Preço: R$ 400 mil. Uma pechincha.
Três horas depois estávamos, Adriano e eu, no tal endereço.
A Amazing Guitars faz jus ao nome. Entre outras raridades, Rafael Moreira, o proprietário, ex-vocalista da banda de thrash metal Panzer, oferece, aos compradores, no momento, uma Gibson Les Paul que pertenceu a Billy Gibbons (do grupo ZZ Top e inimigo número 1 das lâminas Wilkinson) e uma Gibson SG que foi de Max Cavalera (do Sepultura). Papas finas. Mas a 355 de Mick Taylor, como diria o Bruno Henrique do Flamengo, é outro patamar. Sem comparações.
Garoto prodígio do blues britânico, Mick Taylor já esmerilhava na guitarra ainda imberbe, no grupo Bluesbreakers, de John Mayall, com quem gravou três LPs ainda antes de completar 20 anos. Com essa idade, por sinal, foi convidado, em 1969, a ingressar nos Rolling Stones, substituindo Brian Jones, morto pouco depois, afogado na piscina da própria mansão, em um caso ainda nebuloso. Com Taylor empunhando suas Gibsons, a banda de Mick Jagger e Keith Richards viveria o seu século de Péricles.
Foram apenas seis anos, ou pouco menos que isso, mas os fãs dos Stones costumam concordar que a banda, então produzida pelo americano Jimmy Miller, conheceu, ao longo deles, os seus melhores anos. Basta lembrar os álbuns lançados naquele período: Let it Bleed, Get Yer Ya-Yas Out, Sticky Fingers, Exile on Main Street. O pináculo.
Ainda haveria Goat’s Head Soup e It’s Only Rock’n’Roll, menos aquinhoados pela inspiração, mas, ainda assim, superiores, se cotejados ao que os Stones produziriam no futuro. Para quem quer sacar o quão inventivo Mick Taylor podia ser, fica a dica: ouça “Sway” e “Can’t You Hear Me Knocking”, do Sticky Fingers. Ainda melhor: escute o álbum ao vivo, pirata, Brussels Affair, gravado ao vivo em Bruxelas. Está na internet. Os Stones nunca mais teriam um solista como ele.
O caríssimo leitor deve estar se perguntando: como a Gibson semiacústica de Mick Taylor foi parar numa loja Cristiano Viana? Aqui começa uma história rocambolesca, ainda repleta de lacunas.
No começo de 1974, Taylor andava jururu com os Stones.
Keith Richards ingressara de vez em seus tempos de heroína, o que o tornara intratável. À época, costumava dormir de péssimo humor, com um revólver embaixo do travesseiro, como contou em sua autobiografia, Vida.
Mick Jagger, por seu turno, andava deslumbrado com suas andanças do jet set, e botara a banda em segundo plano. Para piorar, Taylor amargava uma frustração: não ganhava qualquer crédito por suas ideias de arranjo e tampouco por suas composições — assinadas, à revelia, por Jagger e Richards. Tremenda desfeita. Mais do que isso, um roubo. De quebra, o casamento de Taylor com Ruth andava estremecido.
Daí porque aceitara o convite para passar férias cariocas, no verão de 1974, no apartamento do amigo Arnaldo Brandão, então baixista de A Bolha, a quem conhecera três anos antes, em Londres. Os dois se davam muito bem. Brandão chegou a morar na casa de Taylor.
Era ponta firme. Uma vez alojado no apartamento do bairro do Vidigal, no Rio de Janeiro, entre Ipanema e São Conrado, Taylor confessou: queria descansar e decidir de vez pular fora dos Stones. Não aguentava mais Jagger e Richards. Nem ouvir falar deles.
Brandão, que mais tarde seria parceiro de Cazuza e Lobão, músico de A Outra Banda da Terra de Caetano Veloso e integrante do grupo Brylho – do sucesso “A Noite do Prazer” —, tentou integrar o hóspede famoso no circuito de suas amizades cariocas. Mas Taylor, além de tímido, estava arredio e um bocado paranoico. Ainda assim, tornou-se amigo do cineasta Neville D’Almeida e da então mulher do diretor de cinema, Liege.
A estada no apartamento de Brandão não foi longa. Taylor começou a ser seguido por jornalistas e fãs. Era tudo o que não queria. Encucado, cismou que Brandão divulgara aos quatro cantos o endereço no Vidigal. Encasquetou que o usara para autopromoção.
Essa impressão se dissiparia anos depois, quando o guitarrista britânico e o baixista brasileiro voltaram às boas. Àquela altura, no entanto, Taylor fez as malas, levando consigo a camisa do Fluminense, que compara no Rio. Teria carregado na bagagem, também, a guitarra Gibson semiacústica. Bandeou-se para a casa de Neville e de Liege, onde julgara encontrar menos bochicho. Queria um refúgio, queria paz.
Neville sugeriu: que tal fugir do Rio de Janeiro para navegar, longe dos fãs e jornalistas, nas águas do Rio Negro, em plena Amazônia? Taylor adorou a ideia.
Neville ainda não atingira o sucesso de A Dama do Lotação (1978), mas já era então interessadíssimo na cultura indígena, que o levaria, nos anos recentes, a dirigir os documentários Maksuara – Crepúsculo dos Deuses e Bye Bye, Amazônia. De fato, viajou com Taylor para uma semana no calor úmido da floresta.
Aqui a história ganha contornos pouco claros. Segundo Rafael Moreira, o dono da loja Amazing Guitars, Mick Taylor carregou a Gibson para a Amazônia. Uma guitarra elétrica em um espartano e acústico cruzeiro no Rio Negro? Parece improvável. Melhor teria sido levar um violão.
A esquisitice maior no relato, contudo, é o que Moreira ouviu do sujeito de quem comprou a guitarra — cujo nome prefere não revelar. De acordo com essa fonte, Mick Taylor se consultou com um pajé. O curandeiro indígena teria apaziguado os conflitos do guitarrista britânico, e até mesmo renitentes dores nas costas. Em gratidão, Mick Taylor deu o instrumento de presente.
A partir daí a Gibson saiu dos rios caudalosos da história para transitar pelos igarapés da lenda. Ou seja, a guitarra foi vendida e revendida. Até ancorar no píer da Cristiano Viana. Seja como for, Rafael Moreira garante: o objeto da melhor madeira é, de fato, a Gibson semiacústica que pertenceu a Mick Taylor. O comerciante, aliás, já vem correndo em busca de um documento revelador da autenticidade do produto. Conhecedor do assunto, está convicto de que conseguirá.
Mick Taylor de fato mandou os Stones para escanteio naquele ano — quem sabe trajando a camisa do Fluminense, clube em que Rivelino ingressaria no mesmo ano. A partir daí, embora guitarrista brilhante, teve uma carreira errática. Completou 76 anos em 17 de janeiro.
No dia seguinte ao aniversário, empunhei a guitarra lendária na loja da Cristiano Viana, observado pelo zeloso Rafael Moreira. Adriano Vanni fez o registro para a História.
Não ousei tocar os poucos acordes que domino. Poucos minutos depois, o instrumento voltou à sua vitrine individual, onde espera pelo certificado de autenticidade e pelo interesse de colecionadores obcecados, contando na lista o guitarrista novaiorquino Joe Bonamassa. Assim como eu, um extremado fã de blues rock — mas, reconheça-se, um tanto mais guarnecido nas contas bancárias.