Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora –
Um viagem no tempo guiada pelas penúltimas do carioquíssimo cronista, letrista, sambista, boêmio…
Conheci Aldir Blanc pelas páginas do Pasquim, lá na metade final dos anos 70, e ficava lendo o jornal nos intervalos das aulas a caminho do vestibular. Fiquei íntimo dos personagens de suas crônicas de Vila Isabel: Penteado, “Tremendo gozador”, Waldyr Iapetec, Lindauro “Boçal, mas bom coração”, Pelópidas “a tranquilidade em pessoa”, Belizário “que bebia para Não esquecer, Lindolfo “maior papo do mundo”, Ceceu Rico, “que não gostava de festa”, Ambrósio Gogó de Ouro e o hoje já lendário Esmeraldo Simpatia-É-Quase-Amor, o conquistador da Penha. Achava que eram todos fictícios – só muito depois, descobri que o único inventado mesmo pelo Aldir era o Penteado, filósofo e criador dos apelidos, inclusive o inesquecível Dois Carburadores (“bebe muito e vive desregulado”).
Também achava eu, adolescente da Zona Sul, que a Rua dos Artistas, com esse nome, fazia parte da ficção. A partir das crônicas, comprei o LP Caça à Raposa, álbum que começa com uma trinca de obras-primas de João Bosco e Aldir Blanc: Mestre-Sala dos Mares (Glória aos piratas, às mulatas, às sereias/ Glória à farofa, à cachaça, às baleias /Glórias a todas as lutas inglórias /Que através da nossa história /Não esquecemos jamais/ Salve o Almirante Negro/Que tem por monumento/ As pedras pisadas do cais), Dois Pra Lá, Dois Pra Cá (Meu coração traiçoeiro /Batia mais que o bongô /Tremia mais que as maracas /Descompassado de amor) e De Frente Pro Crime (O bar mais perto depressa lotou/ Malandro junto com trabalhador /Um homem subiu na mesa do bar/ E fez discurso pra vereador).
Só lembro de ter pisado na Rua dos Artistas ali na virada dos 80, depois de um jogo no Maracanã, para comer o já então famoso risoto de camarão do Restaurante Siri, na esquina com a Rua Almirante João Cândido Brasil – nenhuma relação com o almirante negro João Cândido Felisberto, protagonista de Mestre Sala dos Mares. Já tinha Porta da Tinturaria, segundo livro, com mais histórias de Vila Isabel, publicadas no Pasquim. Eram crônicas da rua, do boteco, de samba e de política. Em 1984, o apelido do Esmeraldo virava nome de bloco em Ipanema: o Simpatia é Quase Amor desfilou pela primeira vez no Carnaval de 1985 e, desde o ano seguinte, eu me visto de amarelo e lilás para sair pelas ruas de Ipanema. Quando o Simpatia comemorou 30 anos, no Carnaval de 2014, Aldir Blanc deu de presente a primeira estrofe do samba: “Quando eu saio /na madrugada mais vadia /levo um bloco /no coração por companhia /Em meu peito, pulsa o amor /e o coração sacode numa arritmia /mas a bateria sustenta a cadência /Tal a Simpatia”. Os colegas jornalistas Marceu Vieira e Janjão Pimentel, em parceria com Orlando Magrinho, completaram o samba Balzaquiando o Simpatia vai passar.
Conversei com Aldir uma única vez em algum lugar na metade dos anos 90. Fui encontrar meu compadre Antero no Bar da Maria, na Rua Garibaldi, na Muda, onde Aldir morou até o fim, e os dois compartilhavam a mesma mesa. Devia ser mais para a segunda metade porque minha afilhada Carolina ainda era criança mas nem tanto porque ficou um tempo no bar – ela nasceu em 1986. Devia ser perto do Carnaval porque eles falaram muito mais do Salgueiro do que do Vasco – eu, salgueirense como eles mas banguense como poucos, muito mais ouvi. Aldir era também de comentários curtos e certeiros como suas crônicas, mas contou histórias do desfile – ou desfiles – do Não Muda nem Sai de Cima, bloco nascido em frente ao bar e ao prédio onde moravam ele e seu parceiro Moacyr Luz. O Bar da Maria, eu já conhecia: mas foram pelas crônicas do Aldir, na época em O Dia, que soube da existência de bares tijucanos como o Momo e seus quitutes – hoje com fama em toda a cidade – e o Pavão e seu cozido.
A parceria Moacyr Luz & Aldir Blanc me fez companhia durante minha temporada de oito anos na Bahia: vez por outra, me pegava cantando Saudades da Guanabara (Chorei /Com saudades da Guanabara /Da Lagoa de águas claras /Fui tomado de compaixão (…e então) /Passei /Pelas praias da Ilha do Governador/ E subi São Conrado até o Redentor/ Lá no morro Encantado eu pedi Piedade /Plantei /Ramos de Laranjeiras foi meu Juramento /No Flamengo, Catete, na Lapa e no Centro /Pois é pra gente respirar (Brasil) /Brasil /Tira as flechas do peito do meu Padroeiro /Que São Sebastião do Rio de Janeiro /Ainda pode se salvar). Ouvi essa música pela primeira vez na voz de Beth Carvalho, e depois ouvi levada pelo Moa e o Samba do Trabalhador no Clube Renascença, no Andaraí, e no Samba Luzia.
Quando voltei, em 2016, o Samba do Trabalhador já havia completado 10 anos de Rena e tinha até produtos exclusivos: numa das minhas visitas, comprei uma camiseta com os versos definitivos de Pra Que Pedir Perdão? (Eu não resisto aos botequins mais vagabundos/ mas não pretendia te envergonhar). Tinha esperança de ver e pegar um autógrafo com o Aldir no lançamento dos livros em homenagem aos seus 70 anos. A Editora Mórula, em parceira com a Livraria Folha Seca, promoveu roda de samba festiva numa Rua do Ouvidor lotada. Mas o autor não foi – os amigos garantiam que ele quase não saía da biblioteca e de sua casa. Comprei Rua dos Artistas – não sei onde foi parar meu exemplar da Codecri – e Direto do Balcão, uma coleção de clássicos de botequim pós Pasquim.
Em setembro passado, nos 73 anos do bardo de Vila Isabel (ou seria da Muda?), estávamos todos na Ouvidor novamente, ouvindo Mariana Baltar, Clarisse Grova, Chico Alves: foram 73 músicas de Aldir Blanc, na organização do mestre de cerimônias e violonista Tiago Prata. Foi Pratinha que, no fatídico dia 4 de maio, comandou um gurufim virtual, madrugada a dentro, no Instagram da Roda do Bip-Bip, outro bar das predileções de Aldir. Vesti a camiseta dos botequins mais vagabundos, tomei umas em casa (que jeito) e comecei a lembrar das coisas que estão nestas linhas.
Devo terminar como uma citação de Aldir mas é difícil escolher. Descarto os versos da agora premonitoriamente trágica Caça à Raposa (Ah, recomeçar, recomeçar /Como canções e epidemias). Avalio, com profundo carinho, uma citação em homenagem aos botequins (“O buteco é o último reduto das palavras” ou, da mesma crônica, Crisma, “o buteco, a última trincheira da gentileza). Considero Resposta ao Tempo (Batidas na porta da frente /É o tempo /Eu bebo um pouquinho /Pra ter argumento), tão clássica que deu nome a biografia escrita por Luiz Fernando Vianna. Acabo decidindo por outra pérola boêmia, menos conhecida, que lembrei ao remexer no passado no dia 4. Me dá a penúltima – porque as crônicas e as letras de Aldir Blanc nunca serão as últimas.
Me dá a Penúltima (Aldir Blanc & João Bosco)
Eu gosto quando alvorece
Porque parece que está anoitecendo
E gosto quando anoitece, que só vendo
Porque penso que alvorece
E então parece que eu pude
Mais uma vez, outra noite,
Reviver a juventude.
Todo boêmio é feliz
Porque quanto mais triste,
mais se iludeEsse é o segredo de quem,
como eu, vive na boemia:
Colocar no mesmo barco,
realidade e poesia
Rindo da própria agonia,
Vivendo em paz ou sem paz
Pra mim tanto faz,
se é noite ou se é dia.
#RioéRua