Por Agostinho Vieira, compartilhado de Projeto Colabora –
Colapso funerário ocasionado pela covid-19 pode provocar infecções secundárias, poluição do lençol freático e contaminação de alimentos
Além de toda a dor e sofrimento, a pandemia de covid-19 nos fez conviver com um vocabulário novo e indesejado. Palavras como comorbidade, lockdown e zaragatoa (ver definições no final do texto) passaram a fazer parte das conversas nas redes sociais. Os recordes sucessivos de mortes pelo coronavírus (outro nome desagradável) chamaram a atenção para mais uma delas: necrochorume. Trata-se de um líquido viscoso, castanho-escuro, composto por água, sais minerais, substâncias orgânicas e patógenos, que penetra no solo após ser liberado no processo de decomposição dos cadáveres nos cemitérios. O neurocientista Miguel Nicolelis já advertiu que o colapso funerário no Brasil e o consequente aumento na produção de necrochorume trará efeitos graves para o meio ambiente e porá em risco a vida de algumas famílias, especialmente as mais pobres que vivem no entorno dos cemitérios:
“O Brasil não tem perspectivas concretas de sair dessa crise em 2021. Se o sistema de saúde colapsar, as pessoas não vão ter para onde ir, vão começar a morrer em suas casas, nas ruas, nas portas dos hospitais. E aí o país terá um colapso funerário, onde você não dá conta dos óbitos, não consegue manejar o volume de vítimas. Começa a ter infecções secundárias, contaminação de alimentos e do lençol freático. Você perde o controle”, explicou o médico em um debate promovido pelo UOL.
Em um artigo publicado na revista Águas Subterrâneas, em 2009, o professor Victor Santos Carneiro, da Universidade Federal da Bahia, conta que foi a partir do século XVII que os enterros passaram a ser a forma mais comum de destinação dos corpos. No início, as pessoas eram enterradas no interior ou ao redor das igrejas. A ideia era deixá-las mais próximas da salvação divina. A iniciativa, incentivada pela Igreja, segregava ricos e pobres. Quanto maior o poder aquisitivo maior a chance de ficar perto ou dentro dos templos. Com o tempo, a prática começou a ser criticada pela comunidade, que sentia o cheiro da decisão equivocada e desconfiava que os gases liberados poderiam contaminar os fiéis com as mesmas doenças que haviam levado os defuntos.
Não tardou para que o hábito fosse proibido pelas autoridades sanitárias, inicialmente na Europa. Mas houve protestos da comunidade cristã em todo o mundo, que não aceitava ficar longe de um santuário. Em Mucugê, no interior da Bahia, túmulos chegaram a ser construídos em formato de capelas para minimizar o problema. Apenas no século XX a própria Igreja reconheceu que a prática não era higiênica e nem saudável. A contaminação de mananciais foi estudada e comprovada em diversos momentos da história por pessoas que ingeriam água de fontes próximas a locais de enterros. O necrochorume não apenas contamina o ambiente com micro-organismos patogênicos, que podem chegar às pessoas, como também infiltra compostos perigosos no solo. Segundo o professor Victor Santos, os danos podem ser irreparáveis.
No Brasil, o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) possui duas resoluções específicas sobe o licenciamento ambiental de cemitérios. Elas indicam a importância de identificar, previamente, por qual caminho o necrochurume tende a seguir. Se ficará no solo ou se chegará a um meio líquido. Daí a necessidade de se fazer uma boa análise do local onde o cemitério será instalado. Quando esse líquido alcança um aquífero subterrâneo, por exemplo, ele pode contaminar a água que está sendo usada para o consumo humano. Se ela for bebida, pode provocar doenças como a febre tifoide, hepatite A, tétano, tuberculose e outras.
Em um relatório publicado em 1998, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou que os cemitérios fossem tratados como um potencial risco para o meio ambiente e a saúde pública. No trabalho, pesquisadores de diversas áreas avaliaram cemitérios na Europa e comprovaram a presença de focos de bactérias e poluentes originários dos túmulos que impactavam a população vizinha.
No Brasil, com o crescimento assustador do número de mortes por conta da covid-19 e a abertura acelerada de covas, a situação só tende a ficar pior. O volume esperado de necrochorume ao longo de um ano acaba sendo atingido em semanas ou dias. Em Manaus, por exemplo, onde foram abertas diversas valas coletivas no Cemitério Municipal Nossa Senhora Aparecida, foi pedida uma atenção especial do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) em relação aos sepultamentos. Na cidade, existem cerca de 10 mil poços que a abastecem a população.
Em maio de 2020, a comissão de Meio Ambiente do Conselho Nacional do Ministério Público publicou uma nota técnica pedindo atenção redobrada nos cemitérios em função da crise da pandemia. Entre as recomendações, “que fosse assegurado que os cadáveres das vítimas de covid-19 fossem acondicionados na forma determinada pelo Ministério da Saúde na cartilha Manejo de Corpos no Contexto do Novo Coronavírus, a fim de evitar novas contaminações e danos ambientais”. Já o ministério do Meio Ambiente não fez qualquer menção, alerta ou mostrou preocupação com os riscos de contaminação. Um levantamento feito pelo geólogo Lezíro Marques Silva, em 2011, mostrou que 75% dos cemitérios brasileiros analisados na pesquisa apresentavam problemas sanitários e ambientais, como solo inadequado, vazamento de necrochorume no lençol freático e proximidade excessiva de áreas residenciais. De lá para cá, a única novidade foi a chegada da pandemia com os seus recordes de mortes.