Por Andréa Martinelli, compartilhado de Huffpost Brasil –
Em livro, as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling recuperam como o País viveu uma epidemia no século 20 e mostram que há semelhanças 100 anos depois. Leia entrevista com elas.
Há quem acredite que a pandemia de covid-19 é inédita, que a humanidade nunca viu ação tão agressiva de um vírus como este, nem tamanho despreparo da sociedade e dos governos para enfrentá-lo. Porém, há pouco mais de 100 anos, um outro vírus tão letal quanto para a época se disseminou pelo mundo. A doença causada por ele, chamada de gripe espanhola, foi apelidada de “bailarina” por se propagar com facilidade para o interior das células do hospedeiro e também por se modificar ao longo do tempo.
Parte da história dessa epidemia do princípio do século 21, em especial a que aconteceu no Brasil, está no livro A Bailarina da Morte: A Gripe Espanhola no Brasil, escrito pelas historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, durante o período de isolamento social, e lançado neste mês de outubro pela Companhia das Letras.
“Eu lembrei de uma conversa entre o Lima Barreto, que eu estudo, e o Monteiro Lobato, em que ele pede pro Lima escrever sobre a pandemia. E o Lima responde que ‘prefere falar de Carnaval’. Essa foi uma dica boa, sabe? Para eu pensar: ‘gente, as pessoas não falam, não escrevem sobre doença’”, conta Lilia Schwarcz. “O Carnaval de 19 foi super animado.”
Desde março, quando a OMS (Organização Mundial da Saúde) decretou pandemia, as autoras contam que se esforçaram para “perguntar ao passado” se o País já havia passado por algo semelhante. Elas descobriram que sim, e que sobretudo essa história não havia sido narrada para além de registros de jornais e trabalhos acadêmicos, inacessíveis ao grande público.
“Chegou um momento que eu não sabia se estava vivendo a gripe espanhola ou a de covid [risos]. Porque é tudo muito parecido, maquiagem de estatística, negacionismo, muita coisa desse tipo”, revela Heloisa Starling.
Em entrevista ao HuffPost, as duas autoras da obra contam como foi a experiência de escrever sobre a epidemia de 1918, durante a pandemia do novo coronavírus, em 2020 — e mostram que o embate entre ciência e política e o negacionismo já existiam mais de um século atrás.
Em um levantamento de 400 páginas, elas mostram como o vírus da gripe espanhola — que matou cerca 50 milhões de pessoas no mundo e superou o total de vítimas da Primeira Guerra Mundial — atingiu o Brasil, que vivia em um contexto em que a existência do Ministério da Saúde e do SUS (Sistema Único de Saúde) ainda não eram sequer um projeto.
“Eu acho que a gente tem que aprender com 18. Teve muito pensamento mágico, hoje tem a cloroquina, naquela época tinha o sal de quinino… Mas você tem Manguinhos, a figura de Carlos Chagas”, compara Lilian. ”Do lado do negacionismo, já existia a suposição de que a doença não iria nos pegar, de que ciência ‘daria um jeito’. Ninguém imaginaria que um micróbio pegaria de aldeias indígenas a grandes cidades [nem em 18, nem em 2020].”
Em diversas passagens do livro, é mencionada a forma fulminante com que a doença atacava o corpo das pessoas na época, em especial, as mais jovens — diferentemente da covid-19. Os relatos das pesquisadoras mostram que, quando acometidas, as vítimas “sangravam pelo nariz, pelos ouvidos, pela boca, pelos olhos, pela vagina (no caso das mulheres); por qualquer orifício do corpo”.
“A letalidade e o ritmo da espanhola era muito diferente [para a época]. Ela era também chamada de ‘gripe dos 3 dias’, porque era o tempo que uma pessoa demorava para morrer”, conta Lilia. “Mas, mesmo ali, se a primeira reação foi de negacionismo, de uma forma ou outra, houve um acerto entre política e ciência, diferente do que vemos hoje. Os governos recorreram aos médicos. Essa imagem do médico político ganhou certa projeção.”
Segundo informações da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), a epidemia chegou ao Brasil em setembro de 1918, quando pessoas infectadas desembarcaram do navio “Demerara”, saído de Lisboa, em Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Em poucas semanas, começaram a ser registrados casos da gripe em outras cidades da região nordeste e em São Paulo.
“Tinha-se medo de sair à rua. Em São Paulo, especialmente, quem tinha condições deixou a cidade, refugiando-se no interior, onde a gripe não tinha aparecido. Diante do desconhecimento de medidas terapêuticas para evitar o contágio ou curar os doentes, as autoridades aconselhavam apenas que se evitassem as aglomerações”, diz texto da fundação.
As historiadoras contam que pelo menos 35 mil morreram da doença no Brasil, de acordo com dados oficiais da época. Diante dos números, Heloisa e Lilia descobriram uma série de estratagemas políticos para mascarar o problema.
“Tem comportamentos muito parecidos. O governo de Pernambuco inventou uma doença que não existia para maquiar a espanhola. O da Bahia disse que não tinha gripe. O de Porto Alegre censurou os jornais. Então, combinar o vírus com a política nunca deu certo”, afirma Heloisa.
Durante a gripe espanhola houve uma série de receitas caseiras e sem comprovação científica para evitar, ou tratar a doença. Entre as fórmulas mágicas, o livro traz um anúncio de um medicamento batizado como “chloro quinino”, à base de “sal de quinino” vendido por uma farmácia em Minas.
Na época, o Brasil já vivia uma epidemia de malária. E o chamado “sal de quinino” é, na verdade, segundo a Fiocruz, o “cloridrato de quinino”, um remédio usado no tratamento da doença que passou a ser produzido durante a gestão de Carlos Chagas, diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública de 1920 a 1926.
O nome, semelhante à “cloroquina”, explorada tanto por Trump quanto Bolsonaro, é apenas uma coincidência. O medicamento, que é sintético, foi produzido anos depois e distribuído no Brasil por volta de 1950.
“Mas já havia isso de vender o milagre. Os médicos na época já disseram que não servia [para a gripe], que era para a malária. E naquela época já havia a tentativa de ganhar dinheiro com a epidemia. E o curioso é ver o mesmo comportamento hoje”, diz Heloisa.
Assim como em 2020, em 1918, a gripe chegou de longe: hoje, de avião, antes, de navio. Naquela época, a espanhola também foi anunciada como uma doença democrática, que atingia todos, mas logo mostrou que seus alvos tinham classe e raça, assim como a covid-19, 100 anos depois.
“Quando a epidemia age, o número de mortes vai se localizar nas populações mais vulneráveis. No Rio de Janeiro, claro, nos arredores que não tinham estrutura, foram os ex-escravizados os mais atingidos. Mas se você for para São Paulo, você tem também a população imigrante que vivia em casarões com muitas famílias”, pontua Lilia.
″À primeira vista, parece que o vírus é muito democrático. Mas ele não é nada assim. Ele não cria nada, ele revela. Aquilo que está debaixo do tapete, ele revela. Revelou hoje, revela há 100 anos”, completa Heloisa.
Para a historiadora e professora titular da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a visita ao passado ajuda a entender o presente. Ela lembra que o escritor Albert Camus, em seu livro A Peste, diz que a doença deixa duas lições: memória e conhecimento.
“Quando a gente faz uma pergunta ao passado, certamente ele não vai responder com a mesma história, ela não vai se repetir. Mas ele nos dá respostas que nos ajudam a pensar o presente. E quem sabe, se a gente conta as histórias, o futuro não vem melhor, não é? Porque como diz o Camus, é isso: tudo o que podemos tirar da peste é memória e conhecimento.”
Leia a entrevista completa:
HuffPost Brasil: Como foi a experiência de analisar a epidemia da gripe espanhola, durante a quarentena e o isolamento social da pandemia do novo coronavírus no País?
Heloisa Starling: A Lilia voltou de Princeton [universidade norte-americana] e a gente levou um susto quando começou a quarentena. A gente nunca tinha vivido nada parecido e ficamos nos perguntando se já tínhamos passado por alguma pandemia como essa aqui no Brasil. E o passado respondeu que sim: a gripe espanhola. E nós tínhamos a ideia – olha que loucura – de fazer um livro e, em dois meses, nos encontrarmos. E não teve nada disso, né? Foi tudo à distância. E a gente levava um susto atrás do outro, tinham coisas muito semelhantes às de hoje. Quando eu achei o “chloroquinino”, eu quis ir a pé até São Paulo mostrar pra ela [risos]. E, querendo ou não, isso nos ajudou a pensar. A gente descobriu que não tem nada sobre a gripe espanhola no Brasil além de trabalhos acadêmicos. Chegou um momento que eu não sabia se estava vivendo a gripe espanhola ou a de covid. Porque é tudo muito parecido, maquiagem de estatística, negacionismo, muita coisa desse tipo.
Lilia Schwarcz: A Heloisa sempre usa essa frase, né? “Perguntamos ao passado e ele nos respondeu com a gripe espanhola”, ela gosta dessa frase [risos]. Nós somos amigas e colegas muito próximas. E eu dou aula na USP (Universidade de São Paulo) e em Princeton. E eu, teimosa que sou, voltei em cima da hora, cheguei aqui em 13 de março, muito impressionada com o que eu vivi lá, ou seja, eu vi a pressa da doença quando ela se instala, a loucura que ela faz no quotidiano e estranhei muito, as pessoas não compreendia isso. E eu conversei com a Heloisa, e as duas malucas, percebemos que aqui nós não tínhamos literatura sobre a gripe espanhola. E, ao mesmo tempo, eu lembrei de uma conversa entre o Lima Barreto, que eu estudo, e o Monteiro Lobato, em que ele pede pro Lima escrever sobre a epidemia. E o Lima responde que “prefere falar de Carnaval”. Essa foi uma dica boa, sabe? Para eu pensar, “gente, as pessoas não falam, não escrevem sobre doença.”
No processo, claro, ficamos muito preocupadas com tudo o que está acontecendo no Brasil, já são 150 mil mortos e um governo que não sabe falar de luto. E a gente começou a perceber que, em 18, com o final da Primeira Guerra, significou uma espécie de “sequestro da morte”. E vimos que estávamos vivendo isso no Brasil de agora. Quando começamos, achávamos que a quarentena seria curta e que poderíamos ir para os arquivos em dois meses. E resolvemos que usaríamos muito dos jornais da época, por alguns terem acesso online; além de teses e dissertações muito boas que nos ajudaram demais. Mas foi um processo autorreflexivo muito grande. Foi um livro escrito a quatro mãos separadas. Foi um processo muito forte.
Quais semelhanças vocês podem dizer que há entre as duas epidemias?
Starling: Existem comportamentos muito parecidos. O governo de Pernambuco, por exemplo, inventou uma doença que não existia para maquiar a “espanhola”. O da Bahia simplesmente disse que não existia gripe. O de Porto Alegre censurou os jornais para que não falassem sobre. Então, combinar o vírus com a política, nunca deu certo. Em Belo Horizonte, por exemplo, tinha muito cinema. E aí, na marra, contrariando o isolamento social na época, o dono dos cinemas resolveu reabrir e a população boicotou. Misturar o vírus com a economia significa botar em risco a vida da população, e nesse caso vimos uma reação. E o que a gente aprende e que tem muito a ver pra gente pensar hoje: à primeira vista, parece que o vírus é muito democrático. Mas ele não é nada assim. Ele não cria nada, ele revela. Aquilo que está debaixo do tapete, ele revela. Revelou hoje, revela há 100 anos atrás. Quem vai morrer? A população pobre, negra, de periferia. Isso serve pra gente pensar hoje.
Schwarcz: Se a gente comparar, o que a gente pode dizer é que, em 18, o mundo estava globalizado, mas não com a rapidez que nós temos agora. As notícias demoravam a chegar. Vinham de navio, demoravam, e as pessoas poderiam imaginar que as doenças também não chegariam. E outra coisa que a gente precisa dizer é que o contexto de 18, o contexto de Guerra, foi uma imensa barbárie, tanto que o historiador [Eric] Hobsbawm diz que o século XX acabou ali. O mundo se achava tão civilizado e não tinha nada de civilização ali. E era uma população doente, fraca, subnutrida; e a gripe espanhola, diferente da covid-19, atingia sobretudo a população jovem. O Brasil nessa época era um celeiro de epidemia, tanto que o médico Miguel Pereira disse que aqui era um “grande hospital”. As pessoas estavam morrendo de tuberculose, malária, varíola. Era uma situação muito difícil. Você tem uma epidemia atacando um corpo que já estava doente. A letalidade e o ritmo da espanhola era muito diferente. Ela era também chamada de “gripe dos três dias”, porque era o tempo que uma pessoa demorava para morrer. Foi, de fato, um campo minado que a espanhola encontrou. Esse é um contexto distinto. Agora, o que eu penso é que as pessoas de hoje em dia não são mais inteligentes de um século atrás. O que nós devíamos fazer? Era contar com a nossa experiência, contar com quem já passou. Mas isso não tem. Vivemos um momento muito veloz. Imagine, o que é a morte? Ela é quando o seu corpo chega no limite. E ela atinge em um outro ritmo. Nesse ritmo maluco em que vivemos, nada mais contraditório do que o tempo da morte.
Na pesquisa, vocês descobriram a existência, já naquela época, do chamado “chloroquinino”, em Minas Gerais, que já era um medicamento contra a malária, assim como a cloroquina…
Starling: É, porque, aqui em Minas Gerais, você tinha uma região que já naquela época era epidêmica de malária. E aí uma farmácia, de gente rica, na Rua da Bahia, colocou um anúncio no jornal dizendo assim: “Achamos um remédio infalível da gripe espanhola. Tome um comprimido por dia: Chloroquino”, com “h”, que era a grafia da época. Então, já havia isso de vender o milagre. Os médicos na época já disseram que não servia, que era para a malária. E naquela época já havia a tentativa de ganhar dinheiro com a epidemia. E o curioso é ver o mesmo comportamento hoje. Eu suspeito que esse composto baixava muito rápido a febre e, por isso, a farmácia vendia assim.
Eu e Lilian pensamos em construir caminhos sobre o que era singular em cada cidade. Então, por exemplo, em Salvador, a questão da religiosidade popular ela aparece muito forte para enfrentar a epidemia, notadamente, diante de um governo que está dizendo que não está acontecendo nada. Quem tem coragem de dizer que a peste tinha chegado é um arcebispo, que reza uma missa para “acabar com a peste”. O candomblé e a umbanda serviram como espaço para as pessoas enfrentaram a situação. Tentamos mostrar o que era característico de cada cidade naquela época.
Schwarcz: A uma pandemia, você tem duas reações possíveis: você sempre cria um bode expiatório, tanto que o nome da gripe espanhola é a prova disso – que a espanha não era o foco, mas o país que não estava na guerra. Mas na própria espanha, era chamada de ‘gripe francesa’. A segunda, é encurtar o caminho, pensar no que é milagroso. A coisa do chloroquinino em Belo Horizonte, eles estavam copiando o que já estava sendo comercializado em outros estados que era o “sal de quinino”. Ele era o remédio utilizado para o combate da malária. E ele também não era recomendado pelas autoridades médicas. Eram criadas várias lendas urbanas, de que as pessoas iam cair na rua se tomassem, que o carroceiro ia levar, etc; tinha o mesmo tipo de efeito que vemos agora, inclusive o de afetar o coração. É uma tendência que se mantém, dessas fórmulas mágicas. E as pessoas acreditam.
No livro, vocês mostram que a “influenza hespanhola” paralisou a economia e desnudou a precariedade dos serviços de saúde. Disputas políticas e atitudes negacionistas de médicos e governantes potencializaram o massacre, que vitimou sobretudo as pessoas mais pobres. Não aprendemos essa lição? Por que é difícil não repetir os erros?
Starling: Eu não sei porque nós esquecemos a espanhola. Veja, nós temos uma literatura muito grande que conta a peste na europa, etc. Mas no Brasil, não. Existe um filósofo brasileiro chamado Eduardo Jardim, que diz que para que a gente possa aprender com a experiência, ela precisa ser narrada. O fato de a espanhola não ter sido narrada por aqui… Não tem história. Ela é um índice temporal apenas. Em um conto, o Guimarães Rosa coloca “foi no tempo da espanhola”. Mas a narrativa, mesmo, nós não temos. Então ela foi apagada da memória. E, portanto, nós não aprendemos com ela. O [Albert] Camus, no livro A Peste diz que a gente aprende duas coisas com ela: memória e conhecimento. Se nós apagarmos a memória, não há como produzir conhecimento. Será que o medo por aqui foi tanto que a forma de exorcizar foi fingir que não existiu? Será que essa foi a forma de encaramos o medo da morte naquela época?
Schwarcz: Eu sou bem mais negativa que a Heloisa [risos]. Eu acho que a humanidade é teimosa. Eu particularmente não acho que se nós tivéssemos contado essa história faria imensa diferença. Eu acho que ela não foi contada por uma situação filosófica que a gente continua a experimentar. As pessoas não gostam de falar de morte, de admitir, a morte. As pessoas preferem falar de vida, de Carnaval, como o Lima. As pessoas que experimentaram e saíram vivas de 1918 sabiam a lição, mas quiseram esquecer. Eu particularmente acho que a humanidade é muito teimosa. Eu espero que ela nos ajude a refletir. Essa não foi a primeira epidemia, né? De tempos em tempos a humanidade passa por isso e nós não tomamos conhecimento porque não chega a nós, como o ebola. E não nos afeta. E o que acontece também, do lado do negacionismo, é supor que a doença não iria nos pegar. A reflexão era que a ciência iria dar um jeito. Ninguém imaginaria que um micróbio pegaria de aldeias indígenas a grandes cidades. A humanidade ocidental é muito pedante. Ou seja, nós acreditamos que vamos dominar tudo. Veja o que – e foi o mestre [Ailton] Krenak – veja, quem está em extinção são os humanos. Os animais estão felizes, as plantas estão agradecidas. A humanidade é prepotente, estica a corda até o limite. O que estávamos fazendo? Você acha que quando passar nos vamos aprender a viajar menos, fazer um outro quotidiano? Vai ser um pouco como foi 18. o Carnaval de 19 foi animadíssimo. Quem sobreviveu quis comemorar que estava vivo.
Nesta semana, chegamos a 150 mil mortos e a 5 milhões de casos de covid-19 no Brasil e parece que o alto número de óbitos não choca mais. Há algum tipo de diferença na forma como as pessoas vivenciam o luto entre 1918 e 2020?
Starling: Uma parte da sociedade naturaliza isso, né? A sociedade brasileira está degradada em termos de valores. Uma sociedade que vê 150 mil pessoas mortas e não reage, tem algo errado do ponto de vista dos valores… Eu não diria que são valores democráticos, são valores da civilização. Algo se perdeu para que a sociedade olhe para isso e não reaja. Há 100 anos ela reagiu de várias maneiras, inclusive fazendo boicote. Eu suponho que a gente tenha uma fatia da sociedade brasileira hoje que perdeu os valores da convivência. São indivíduos vorazes, egoístas e sem relação com o outro. É pensar em um sujeito que não usa máscara… Usar máscara não é para se proteger. É para proteger o outro. Mas como ele não tem relação, identificação com o outro, ele não usa.
E em relação aos papéis sociais dos homens e das mulheres? A pandemia traz alguma mudança em relação à história das mulheres?
Schwarcz: A situação é um pouco assim: toda epidemia quando chega tem essa pecha de que é democrática. Foi assim em 1918 e foi assim em 2020. Lá foi de navio, aqui foi de avião. Quando a epidemia age, o número de morte vai se localizar nas populações mais vulneráveis. No Rio de Janeiro, claro, nos arredores que não tinham estrutura, foram os ex-escravizados os mais atingidos. Mas se você for para São Paulo, você tem também a população imigrante que vivia em casarões com muitas famílias. Além deles, os indígenas. Em 18 – e essa é uma parte da pesquisa que eu gostaria de desenvolver ainda mais – você tem grupos indígenas que desapareceram. E nas mulheres, elas eram do lar. Haviam poucos casos de mulheres com carga tripla. Não existem tantos registros. Existem no Rio e em São Paulo, de casos de mulheres que foram internadas porque supostamente estariam “loucas”. E um caso que me chocou muito foi em Belém, que tinham zonas de prostituição. Elas sofreram muitíssimo. Perderam a clientela e foram motivo de muito preconceito. No caso de Belém e Manaus elas viraram um dos bodes expiatórios.
De que forma o que aconteceu em 18 pode ajudar a passar por 2020?
Schwarcz: Bom, eu sempre acho que a história ela não explica nada. Mas ela pode dar uma lição. O que pode nos ajudar? Eu acho que ajuda muito, assim como ajudou a mim e a Heloisa. A primeira coisa é perceber que a história não é evolutiva, que ela pode ser involutiva. Porque, naquele momento, a notícia da doença também foi recebida com muito negacionismo, foi uma coisa que nós notamos: somos uma civilização do corpo saudável, não estamos preparados para envelhecer, para adoecer, somos sempre super heróis. Por isso mesmo, esse tipo de notícia sempre é recebida com muito negacionismo. Mas o que notamos em 18, é que a saúde estava federalizada, não havia ministério da Saúde, ele só foi criado em 1930, mas que, se a primeira reação foi de negacionismo, de uma forma ou outra, houve um acerto entre política e ciência. Essa imagem do médico político ganhou certa projeção.
Toda epidemia é um mal coletivo, e quando é assim, não adianta nada eu cuidar só de mim. É uma situação de que não é uma doença que eu tenho, é algo que acomete a todos. Então, nós que temos hoje, em 2020, o Ministério da Saúde não fazemos uso dele porque temos um general na cabeça da pasta – que pode ser um ótimo general, mas não é um especialista em saúde, que temos um presidente que acredita em pensamento mágico – então não estamos tirando proveito de duas facilitações que nós temos e que eles não tinham em 18: o SUS (Sistema Único de Saúde) e o Ministério da Saúde. Então, nesse sentido, eu acho que a gente tem que aprender com 18. Teve muito pensamento mágico, hoje tem a cloroquina, naquela época tinha o sal de quinino… Mas você tem Manguinhos, a figura de Carlos Chagas.
Na dedicatória do livro, vocês citam nomes de netos, afilhados e justificam que é porque “o futuro mora ali”. O futuro mora logo ao lado, mesmo? É possível vislumbrar de que forma a pandemia transformará o futuro?
Starling: Eu acho que historiador é bom pra falar de passado e não de futuro [risos]. Mas eu espero que os professores do futuro registrem que não é produtivo fazer uso político de uma pandemia, que vamos precisar da ciência e do conhecimento e que uma sociedade que não considera que a vida de cada um tem valor em si, não é uma sociedade é um aglomerado. A vida de cada brasileiro tem que valer igual. Se passarmos isso, o futuro será melhor. Quando a gente faz uma pergunta ao passado, certamente ele não vai responder com a mesma história, ela não vai se repetir. Mas ele nos dá respostas que nos ajudam a pensar o presente. E quem sabe, se a gente conta as histórias, o futuro não vem melhor, não é? Porque como diz o Camus, é isso: tudo o que podemos tirar da peste é memória e conhecimento.
Schwarcz: Eu acho que o Brasil vai sair mais pobre e mais desigual. Disso eu não tenho nenhuma dúvida. Eu tenho dito que eu sou otimista no varejo e pessimista no atacado [risos]. Eu penso que a sociedade civil tem se mobilizado, é o que de melhor está acontecendo. Há setores que só negam também, né? Mas eu sou de uma geração que acho que nós falhamos. A minha geração falhou. Nós achávamos que a democracia já estava garantida. E acho que nós não percebemos a vinda desse fenômeno autoritário, nós não demos respostas a questões fundamentais, mesmo entre saúde, educação e segurança. Então, eu boto muita fé nas gerações que vem aí. Eu sei que a pandemia é ruim para todos, mas está sendo muito dramática para as crianças e adolescentes também. Quem sabe essa experiência não pode gerar algo lá na frente.