Por Laís Modelli, publicado em BBC News –
“Parece que os negros não têm passado, presente e futuro no Brasil. Parece que sua história começou com a escravidão, sendo o antes e o depois dela propositalmente desconhecidos.”
Quem afirma é o antropólogo Kabengele Munanga, professor do Centro de Estudos Africanos da Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências e Humanidades da USP. Não à toa, o Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro, é baseado na história envolta em mistérios e lendas de Zumbi dos Palmares, escravo que liderou um quilombo em Alagoas no século 17.
Considerado o maior herói do movimento negro brasileiro, Zumbi teria sido assassinado em 20 de novembro de 1695. A data, porém, só foi descoberta em 1970 e só em 2003 foi incluída no calendário escolar.
Ainda assim, é constante a reclamação, por parte de ativistas, de que negros e negras proeminentes na história brasileira continuam sendo deixados de lado nas aulas de História. Conheça alguns deles.
Zumbi dos Palmares
No século 17, Zumbi foi capturado por bandeirantes ainda bebê e entregue ao padre Antônio Melo, em Porto Calvo, região do Rio São Francisco. Sabe-se que ele foi batizado pelo padre com o nome de Francisco, mas a data exata de seu nascimento não é conhecida.
Com 15 anos, Zumbi conseguiu fugir para o Quilombo dos Palmares, atual região de Alagoas. No quilombo – uma das comunidades livres fundadas por escravos que conseguiram fugir dos seus senhores -, o adolescente adotou o nome de Zumbi, que significa “espectro, fantasma ou deus” no idioma quimbundo.
O Quilombo dos Palmares foi o maior das Américas, abrigando cerca de 20 mil habitantes em 11 povoados.
“Zumbi liderou a luta contra a escravidão e reuniu não apenas muitos negros que fugiam das senzalas, mas também indígenas e brancos insatisfeitos com o regime escravista”, disse Kabengele Munanga à BBC Brasil.
Zumbi foi o último líder do Quilombo dos Palmares e chefiou a luta de resistência contra os portugueses, que durou 14 anos e terminou com sua morte, em 1695.
Mesmo carente de armas, o Quilombo dos Palmares tinha uma eficiente organização militar. A comunidade resistiu a 15 expedições oficiais da Coroa.
Na décima sexta expedição, depois de 22 dias de luta, Zumbi foi capturado, morto e esquartejado por bandeirantes. Sua cabeça foi enviada para o Recife, onde ficou exposta em praça pública até se decompor.
Dandara dos Palmares
Assim como Zumbi, não há registros do local nem da data de nascimento Dandara. Acredita-se que ela foi levada para o Quilombo dos Palmares ainda criança. Lá teria aprendido a caçar, lutar capoeira e manusear armas. Foi uma das líderes do exército feminino em Palmares e mulher de Zumbi, com quem teve três filhos.
Depois que o Quilombo foi tomado pelos portugueses,em fevereiro de 1694, Dandara cometeu suicídio para não ser capturada e voltar à escravidão.
Milton Santos
Milton Santos nasceu em 3 de maio de 1926, em Brotas de Macaúbas, na Bahia. Filho de dois professores primários, ele tornou-se um dos geógrafos negros mais conhecidos no mundo.
Sua formação, no entanto, não era em Geografia, e sim em Direito, pela Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Santos foi o precursor da pesquisa geográfica na Bahia e, na década de 1990, tornou-se o único pesquisador brasileiro a ganhar o Prêmio Vautrin Lud, considerado o Nobel de Geografia. No mesmo período, ganhou um Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira, pelo livro A Natureza do Espaço.
Após o golpe militar de 1964, o baiano foi perseguido e preso pelo regime, por ter sido representante da Casa Civil na Bahia durante o curto governo de Jânio Quadros. Com ajuda do consulado da França, conseguiu asilo político na Europa.
O geógrafo deu aulas e fundou laboratórios na França, na Inglaterra, na Nigéria, na Venezuela, no Peru, na Colômbia e no Canadá. Ele conseguiu retornar ao Brasil somente nos anos 1980.
Apelidado de “Cidadão do mundo”, Milton Santos recebeu vinte títulos de Doutor Honoris Causa de universidades da América Latina e da Europa, publicou mais de 40 livros e mais de 300 artigos científicos. Morreu em 24 de junho de 2001.
Machado de Assis
Filho de um mulato pintor de paredes e de uma imigrante portuguesa que trabalhava como lavadeira, Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 21 de junho de 1839, no Rio de Janeiro. A escravidão foi abolida somente 49 anos após o seu nascimento.
Por causa do preconceito racial, ele teve acesso limitado ao ensino e se tornou autodidata. No seu primeiro trabalho, em uma padaria, aprendeu com a patroa a ler e traduzir em francês.
Aos 17 anos, se tornou tipógrafo na Imprensa Nacional. Passou a colaborar para diversas revistas aos 19 anos e, pouco depois, trabalhou para jornais como Correio Mercantil e Diário do Rio de Janeiro.
Machado de Assis só se tornou um escritor conhecido a partir de 1872, com a publicação do romance Ressurreição. Ele foi eleito o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. O livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881, é considerado sua maior obra e uma das mais importantes em língua portuguesa.
O romancista morreu em 29 de setembro de 1908.
Lima Barreto
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881, no Rio de Janeiro, neto de escravos e filho de professores.
Em 1897, menos de dez anos após o fim da escravidão, ele foi aceito na importante escola de Engenharia do Rio de Janeiro – o único negro da sala. No entanto, ele abandonou a universidade em 1902 para cuidar do pai, que sofria de uma doença mental.
Lima Barreto tornou-se funcionário público para sustentar a família e, nas horas vagas, escrevia reportagens para o jornal carioca Correio do Amanhã, denunciando o racismo e a desigualdade social no Rio de Janeiro.
Um dos principais romances brasileiros, O Triste Fim de Policarpo Quaresma, foi o segundo romance publicado por Barreto.
Ele morreu em 1922, aos 41 anos, considerado louco. Deixou uma obra de dezessete volumes e nunca recebeu nada para escrever nenhum deles.
Seu reconhecimento como escritor veio somente após a morte. Em 2017, foi o homenageado da Feira Literária de Paraty, um dos maiores eventos da literatura brasileira.
Carolina Maria de Jesus
Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, em Sacramento, Minas Gerais. De família pobre, ela cursou somente os primeiros anos do primário, e se mudou para São Paulo em 1937, onde trabalhou como doméstica e catadora de papel.
Nesse período, ela mantinha consigo inúmeros diários onde relatava o seu dia a dia como moradora da favela do Canindé.
Em 1958, ao fazer uma reportagem no Canindé, o jornalista Audálio Dantas conheceu Carolina e leu seus 35 diários. Dois anos depois, ele publicou um dos diários com o título de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. A obra vendeu mais de 100 mil exemplares em 40 países e foi traduzida em 13 línguas.
Em 1961, Carolina de Jesus lançou Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-favelada e, no ano seguinte, publicou Pedaços da Fome, seu único romance.
Depois de desentendimentos com editores, em 1969, a escritora saiu de São Paulo e mudou-se para um sítio. Morreu em 1977, aos 62 anos, de volta à pobreza.
Abdias do Nascimento
Neto de escravos, Abdias do Nascimento nasceu em uma família em 1914, na cidade de Franca, em São Paulo. Ele começou a trabalhar aos 9 anos e, para conseguir se mudar para São Paulo, se alistou no Exército.
Nascimento teve que abandonar a instituição, no entanto, ao entrar para o movimento da Frente Negra Brasileira, que realizava protestos em locais públicos contra o racismo.
Em 13 de outubro de 1944, ele criou o Teatro Experimental do Negro, junto com outros artistas brasileiros. Escritores da época, como Nelson Rodrigues, escreveram peças teatrais especialmente para o grupo, que também se dedicou a alfabetizar ex-escravos e transformá-los em atores.
Durante a ditadura militar, Nascimento foi preso e enviado ao exílio. Ele retornou ao Brasil somente em 1981.
Além de ator, teatrólogo e ativista, Abdias Nascimento foi deputado federal pelo Rio de Janeiro logo após o final do regime militar. Na década de 1990, foi eleito senador, sempre com a plataforma da luta contra o racismo.
Ele faleceu em 24 de maio de 2011, aos 97 anos.
Teodoro Sampaio
Quem passa pela movimentada rua Teodoro Sampaio, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, geralmente não sabe a importância do homem que dá nome à via. Filho de uma escrava e de um padre, Teodoro Sampaio nasceu em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, em 1855.
Seu pai, o padre Manoel Sampaio, o levou para o Rio de Janeiro criança e o matriculou no regime de internato no Colégio São Salvador. Em 1877, ele se formou engenheiro.
Por anos, ele trabalhou como professor de matemática e desenhista do Museu Nacional para poupar dinheiro e comprar a alforria de sua mãe e irmãos.
Em 1879, Sampaio participou da expedição científica ao Vale do São Francisco para estudar os portos do Brasil e a navegação interior. Ele ajudou a fundar o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em 1894, e a Escola Politécnica da USP, em 1930.
Morreu no Rio de Janeiro em 1937.
Sueli Carneiro
Aparecida Sueli Carneiro Jacoel nasceu em São Paulo, em junho de 1950. É a mais velha dos sete filhos de uma costureira e de um ferroviário. Doutora em filosofia pela USP, foi a única negra no curso de graduação da Universidade, na década de 1970.
Hoje, ela é uma das mais importantes pesquisadoras sobre feminismo negro do Brasil. Seu nome e ativismo foram relacionados à formulação da política de cotas e à lei antirracismo.
Em 1988, Sueli fundou o Geledés – Instituto da Mulher Negra, uma organização política de mulheres negras contra o racismo e sexismo. É uma das maiores ONGs de feminismo negro do país. Entre os vários serviços prestados pelo instituto, está o de assistência jurídica gratuita a vítimas de discriminação racial e violência sexual.
Ainda em 1988, Carneiro foi convidada para integrar o Conselho Nacional da Condição Feminina. É vencedora de três importantes prêmios sobre feminismo e direitos humanos: Prêmio Benedito Galvão, Prêmio Direitos Humanos da República Francesa e Prêmio Bertha Lutz.
André Rebouças
Neto de uma escrava alforriada e filho de Antônio Pereira Rebouças, um advogado autodidata que se tornou conselheiro de D. Pedro 2º, André Rebouças nasceu em 1838, em Cachoeira, Bahia, em uma família classe média negra em ascensão no Segundo Reinado.
Por causa da posição atípica de sua família para a época, André e seus seis irmãos receberam uma boa educação. O menino e um de seus irmãos, Antônio Rebouças, se tornaram importantes engenheiros e abolicionistas.
Como engenheiro, seu maior projeto foi o da estrada de ferro que liga Curitiba ao porto de Paranaguá, considerado, até hoje, uma realização arrojada.
Como abolicionista, ele criou, junto de Machado de Assis, Joaquim Nabuco e outros abolicionistas importantes da época, a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão.
Após o fim da escravidão, no entanto, a monarquia também chegou ao fim. Com a proclamação da República, em 1889, a família de D. Pedro 2º e pessoas ligadas a ele, como a família Rebouças, tiveram que partir para o exílio.
André nunca mais retornou ao Brasil. Em 09 de maio de 1898, deprimido com o exílio, o engenheiro se jogou de um penhasco perto de onde vivia, em Funchal, na Ilha da Madeira.
Algumas capitais brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Curitiba, têm avenidas e túneis chamados de Rebouças em homenagem ao engenheiro negro.