Difícil ainda acreditar, digerir, quanto mais aquilatar, em palavras, o tamanho da perda de Nelson Freire para o meio musical brasileiro. A segunda-feira amanheceu cinzenta, e em clima de total consternação. Nelson não era apenas nosso principal pianista, paradigma de excelência e fonte inesgotável de inspiração para todos nossos profissionais do teclado.
Por Irineu Franco Perpetuo
Ele era nosso maior artista nessa área que chamamos de música clássica, erudita, ou de concerto. Em um certo sentido, ele desmentia seu xará, outro Nelson genial, o Rodrigues – que dizia que toda unanimidade é burra. Nelson Freire era uma unanimidade para lá de inteligente.
Se algo consola nessa notícia tão triste a respeito do Nelson Freire é saber que ele não morreu relegado ao esquecimento, como é tão comum nesse país sem memória. Pelo contrário: qualquer um que tenha entrado nas redes sociais em 18 de outubro, quando ele completou 77 anos, pôde averiguar o carinho global com que fãs e admiradores de todo o planeta saudavam seu talento supremo.
Dado o caráter sempre introspectivo do Nelson – avesso a toda badalação, sem jamais ter se rendido ao mundo da internet (e quem poderia imaginá-lo fazendo posts em uma rede qualquer?) –, isso poderia ter sido diferente.
Até o final da década de 1990, não era incomum, na imprensa internacional, vê-lo referido como “o segredo mais bem guardado do piano”.
Os especialistas, obviamente, conheciam seus discos fulgurantes das décadas de 1960 e 1970, quer com a Filarmônica de Munique, regida por Rudolf Kempe, quer os álbuns solo (como os prelúdios de Chopin). E também se deleitavam com a química especialíssima que operava cada vez em que ele subia no palco com sua amiga de juventude, a maga Martha Argerich – um encontro sempre especial e avassalador, uma matemática em que 1+1 dava um resultado maior do que um milhão.
Mas o ponto de virada foi sua inclusão em Great Pianists of the XXth Century, coleção de 200 CDs com 72 artistas, lançada em 1999 pela Philips, com o patrocínio da Steinway. Freire foi o único brasileiro incluído – e isso equivaleu a uma reinserção no mercado internacional. Como se todas as fichas caíssem ao mesmo tempo, como se o mundo finalmente abrisse os ouvidos para uma mensagem musical que Freire tocava com o apuro de sempre, mas sem jamais berrar nos megafones da mídia.
Em 2003, ele assinou um contrato de exclusividade com a Decca, e desde então, diligentemente, veio gravando repertório inteiramente de sua escolha – pensando no legado, como ele me disse certa vez. No mesmo ano, veio o documentário Nelson Freire, de João Moreira Salles – na tela do cinema, um público mais amplo finalmente pôde ter uma ideia do gigantesco artista que vivia entre nós, enquanto seus fãs tiveram a chance de conhecer um pouco da intimidade desse pianista tão discreto e reservado, que preferia deixar a arte falar por si.
Se pudesse escolher, o próprio Nelson teria incluído na edição da Philips Guiomar Novaes – sua mentora estética, referência maior, que ele homenageava em quase toda apresentação ao tocar a transcrição de Giovanni Sgambatti (1841-1914) para piano solo da célebre melodia para flauta da ópera Orfeu e Eurídice, de Christoph Willibald von Gluck (1714-1787).
E talvez o encanto do pianismo de Freire residisse justamente aí – em ele ter sido uma ligação entre os tempos de hoje e a assim chamada “era dourada” do piano, em ele soar como uma continuidade estética daquela época, como uma floração tardia de uma safra de poetas do teclado. Não por acaso, alguns dos maiores expoentes das novas gerações do piano, como Yuja Wang e Cristian Budu, peregrinavam até ele atrás de conselhos – e o regente Valery Gergiev comparava-o a uma lenda do piano russo como Emil Gilels.
Associamos Freire mais ao repertório do século XIX – e, efetivamente, ele parecia extremamente à vontade na grande arquitetura beethoveniana, na introspecção de Brahms (como não amar sua gravação dos concertos?), nas tempestades internas de Schumann, nos arroubos de virtuosidade de Liszt e, sobretudo, na poesia de Chopin, do qual ele possivelmente tenha sido o maior intérprete que já tivemos. Mas era possível ouvi-lo também emprestar um toque refinado a Bach e Mozart, explorar as sugestões sonoras de Debussy, extravasar o sentimentalismo de Rachmaninov, embrenhar-se nas florestas de Villa-Lobos.
Dotado de enorme integridade artística, Nelson Freire só tocava o que queria tocar – e, a isso, emprestava todo seu imenso bom gosto e exuberância técnica superlativa. O ato de tocar, para Freire, parecia tão natural e espontâneo que não nos dávamos conta de sua versatilidade. Para lá de completo, ele era ourives meticuloso nas miniaturas, herói épico nos concertos com orquestra, intelectual sofisticado nas sonatas. Vamos sentir muita falta de sua sensibilidade suprema, de sua sonoridade inigualável, de sua paleta de cores inesgotável e, sobretudo, de poder cobri-lo de bravos e aplausos. Será triste nunca mais poder pedir um bis a Nelson Freire.