Nelson Wedekin sobre as mãos que assassinaram o reitor Cancellier: “Mãos não só de autoridades, mas de uma imprensa que primeiro atira e só depois pergunta quem vem lá”

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Via João Lopes e Gisele Cittadino, Facebook

Nas homenagens realizadas na UFSC, o ex-senador Nelson Wedekin fez esse triste e duro discurso sobre a morte do reitor Cancellier. Meus amigos Zk Moreira e Prudente Silveira Mello me encaminharam através de um grupo que compartilhamos. Sigo inconformada e, após a leitura, muito emocionada. Ninguém nesse país deveria deixar de ler esse texto.(Preâmbulo da Gisele Cittadino de quem roubartilhei)




“Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cao, está morto.

Nas estatísticas oficiais a morte de Cao será contada como suicídio.
Mas ninguém se iluda. Mãos visíveis algumas, que podem ser identificadas sem que seja necessário levar ninguém à prisão, e mãos invisíveis, muitas mãos invisíveis, o empurraram das alturas, de modo que os seus ossos se quebrassem, o sangue jorrasse na hemorragia incontrolável, e a vida se extinguisse rapidamente no choque terrível. Instantes depois do baque surdo, o coração cheio de bondade, de tolerância, de respeito ao próximo, parou de bater.

Que mãos eram essas? Mãos de quem talvez saiba o que é vingança, mas sabe pouco do que seja justiça. Mãos de quem só têm a si mesmo como honestos e virtuosos, senhores do bem e do mal, da reputação de quem mal conhecem e que não têm curiosidade de conhecer.

Mãos de quem, tendo o poder de prender, ignoram a gravidade do delito suposto, e para quem tanto faz ter o cidadão ficha limpa ou antecedentes criminais. Mãos de quem, sendo ciosos da imagem de suas respectivas instituições, desprezam, entretanto, a imagem das demais, como deuses de um alcorão, uma bíblia fundamentalista.


Mãos de quem, tendo o poder de prender sem flagrante, e de começar uma investigação pela coerção, constrangimento e prisão dos suspeitos, não chegam a perceber que o método rústico revela a incapacidade de cumprir seus deveres e obrigações com inteligência, método e moderação.
Mãos de quem, ciosos de seu poder e autoridade, ao invés de exercê-los com critério, partindo do pressuposto inalienável de que o cidadão pode ser culpado, pode ter só parte de culpa, ou nenhuma culpa, pensando que seu juízo e sua intuição são infalíveis, só têm olhos para as evidências que confirmem as suas suspeitas.

Mãos de quem, ainda ontem frequentavam os bancos da faculdade, mas para quem a presunção da inocência – pináculo do estado de Direito, pilar da democracia, conquista da civilização – é um inútil ornamento da lei.

Mãos de quem não abrigam em seus corações nenhum sinal de bondade, de compreensão pelo outro, e em suas cabeças nenhum raciocínio a respeito da proporção dos seus atos, nenhuma projeção dos seus efeitos e suas consequências, para o ser humano, a instituição, a comunidade.

Mãos de quem em nada parecem saber que a prisão é, em toda circunstância, a não ser nas ditaduras, desonrosa. Em nada parecem saber que abate, constrange e humilha, aprisionar, examinar alguém em corpo nu, vesti-lo em roupa de prisioneiro, e que tudo isso adentra pelo terreno da barbárie, ainda mais quando se faz sem flagrante, sem a sentença, antes mesmo de ser réu.

Mãos de quem se aproveitam de uma época inglória e insana, de uma sociedade exaurida pelos escândalos públicos, e que em boa parte, têm espuma e sangue nos lábios, e para quem tudo é joio, e trigo só eles são, tendo na ponta da língua os chavões da época, de condenação geral aos bandidos de verdade, mas levando juntos os que passaram perto e os inocentes que têm o azar de atravessar o caminho.

Um pouco de humildade, um pouco de humanidade não lhes faria mal. Não conheço nenhum desses agentes da lei, e não desejo conhecê-los, porque tenho medo deles.
Que autoridades são essas que ao invés de proteger nos causam medo e terror? Quem são eles, assim destituídos de humanidade e razão?
É preciso agir com a mão assim pesada, com tal crueldade, com tal virulência e desumanidade?
Não se passa o país a limpo assim, senhores e senhoras. Digo de novo o que já escrevi: os senhores, as senhoras, estão jogando o bebê fora junto com a água do banho.

Mãos não só de autoridades, mas de uma imprensa que primeiro atira e só depois pergunta quem vem lá, quando e se pergunta. Uma imprensa que toma como verdadeira, em princípio, a palavra da autoridade, não mediada, não contextualiza.

De blogueiros, ativistas e pessoas “comuns” que, raivosos, expelem argumentos chulos, pensamentos prontos, clichês preconceituosos, manifestações de atraso e ignorância, e ódio, muito ódio nas redes sociais Mãos de quem confunde moral com moralismo de baixo custo, que a todos rotula, por método, costume e um certo prazer sádico.

Cancellier almoçou lá em casa há menos de uma semana. Com o filho Mikhail, Ricardo Baratieri, Arlete e Nara Micaela. Ao final, nós estávamos reconfortados. Cancellier nos pareceu lúcido, fazendo um esforço genuíno para compreender que tinha sido vítima de uma dessas armadilhas do destino, uma coincidência infeliz. Ele parecia razoavelmente recuperado do golpe sofrido.

Um turbilhão que tudo arrasta, um vendaval que se solta, uma cilada da vida: assim pareceu Cancellier encarar o seu drama pessoal. Ele aparentava uma calma estranha, uma misteriosa resignação.

Quando soube de sua morte ontem, compreendi imediatamente: ele já havia engendrado o seu destino, fingiu serenidade, para que ninguém quisesse interromper o plano que já tinha traçado. Alguém já disse que não há pior vergonha do que a de não ter feito o que lhe imputam. Muito pior que a desonra, é o sentimento de quem não a merece.

Podem ficar tranquilos todos e cada um dos mais de cem agentes públicos e autoridades do Estado que, de alguma forma contribuíram para desenlace trágico, dando ou cumprindo ordens, assinando as portarias, os despachos, cumprindo as frias formalidades da “lei”, que este homem singular, Cancellier, que não cultivou em vida a raiva, a mágoa, o ressentimento, também não os levará para a eternidade.

Conduziram-no ao camburão, abriram as portas do cárcere um homem que não queria mal a ninguém, que não fazia mal a ninguém. Um homem de coração generoso e aberto, um democrata na teoria e mais ainda na prática, um homem de diálogo e conciliação, um campeão da harmonia e da paz.

Ah, Cancellier, como você, querido amigo e querido irmão fará falta, ainda mais nesta terra brasileira nunca tão dilacerada pela dissensão e a intolerância, apequenada nos conflitos políticos de uma República abastardada, no facilitário do ódio, na insensatez arrogante de muitas das suas elites.

Como fará falta sua voz calma e pacificadora, em busca da palavra certa em favor do diálogo e do entendimento, na instituição que você respeitou, protegeu e amou mais do que qualquer outro, a quem você emprestou o seu talento e capacidade de trabalho, esta Universidade Federal de Santa Catarina, o palco involuntário de uma tragédia que marcará para sempre e indelevelmente a sua história.

Abraço caloroso, Mikhail, Júlio, Acioly, Cristiane, familiares, amigos. Choremos o passamento de Cao Cancellier e sigamos o seu exemplo, de uma vida dedicada ao bem, à justiça, à liberdade e à paz entre os homens. Descanse Cao em algum lugar, na dimensão possível.
E rezemos para que esta tragédia que nos causa tamanho torpor, tal comoção, que nos fere tão fundo na alma, de alguma maneira seja uma lição que nos afaste da barbárie, nos contagie com um pouco de fraterna humanidade, nos dê força para enfrentar esta provação.

Abraço sentido e caloroso, reitora Alacoque, pró-reitores, diretores, servidores e alunos. Universidade, se bem interpreto o pensamento do amigo e irmão que se foi de forma tão despropositada, é lugar onde se privilegia o conhecimento e o saber, a extensão e pesquisa.

É o lugar dos crentes e dos ateus, dos socialistas e dos liberais, da direita e da esquerda, dos negros, indígenas e brancos, dos pobres e dos ricos, das mulheres e dos homens, dos hétero e dos homossexuais. Aqui se encontram, convivem e aprendem para a vida e a cidadania, todas as tribos da comunidade nacional e planetária.

Todos os que se acham superiores moralmente, politicamente, esqueçam. Somos todos iguais ou parecidos em defeitos e qualidades. Experimentem, como o Cao fazia o tempo todo, calçar de vez em quando as sandálias da humildade. A Universidade não é o lugar apropriado para a guerrilha política, para o “nós” contra “eles”.

Aqui podem e até devem se bater as facções, as narrativas históricas, mas ninguém é dono do futuro e só uma busca é possível e legítima: a de uma sociedade próspera, justa, livre e fraterna. Universidade rima com verdade e liberdade”.

 

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