Nem fogo, nem gelo: o genocídio “morno”

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A decisão do “G7”, grupo majoritário da CPI da Pandemia que representa a força acusatória contra o delinquente da República e seus não menos delinquentes pares, de retirar do relatório final as acusações de genocídio e homicídio e que deixam os mais graves crimes focalizados no enquadramento de crime contra a humanidade pode sim fazer sentido para o formalismo jurídico e para uma certa cautela e prudência para que se evite um certo vexame em algum momento de outras instâncias pós-CPI. Mas também reforçam o sentido de uma já antiga máxima deste autor, que reza que o Brasil é um país onde nada esquenta a ponto de pegar fogo e nada esfria a ponto de congelar. É tudo morno.

Por Nelson Nisenbaum, compartilhado de Construir Resistência




O mal de tudo isso é que a grande força subjacente para que tudo siga na tropicalidade é tão simplesmente a covardia, que sempre está a postos para impedir que o país enfrente com a necessária crueza e contundência os seus problemas mais profundos. No contexto atual, nada poderia ser mais perverso do que não vislumbrar a clareza da perversidade que moveu (e move) Bolsonaro na condução macabra desta pandemia, algo que por sinal em nada surpreende aquele que observou minimamente a biografia profética deste patológico algoz, que usou a pandemia para executar a sua política de reforma do estado baseada na eliminação pura e simples de setores da sociedade.

Por outro lado, o relatório da CPI não é uma peça acusatória jurídica, e sim, um inquérito político que constitui a versão oficial de estado dos fatos e reúne idealmente a melhor documentação sobre os fatos. As peças jurídicas caberão às instâncias jurídicas, e estas poderão concordar, discordar ou simplesmente divergir do eixo do relatório mediante a releitura das provas e a ressignificação dos contextos, de modo a confirmar, refutar e/ou criar peças e fundamentos acusatórios. Daí, no modesto e despretensioso entendimento deste clínico, não se justifica a falta de coragem da CPI em cometer algum “deslize” por “licença poética” e ressignificar os fatos apurados em um contexto de uma inadmissibilidade que finca estacas e amplia fronteiras ao longo do tempo decorrido de outros genocídios assim reconhecidos. Sem a compreensão de que o conceito de genocídio tem o dever de ser pedagógico e que seus perpetradores sofisticam seus métodos com o passar do tempo como qualquer participante do crime organizado e assessorado justamente para fugir dos enquadramentos jurídicos, deixaremos abandonadas as milhões de almas vítimas de outros genocídios (reconhecidos ou não como tal) a ver novamente o filme da banalização do mal. Pois não há nada que banalize mais um genocídio (e no caso particular dos judeus, o Holocausto) do que não reconhecer na situação brasileira atual as sombras e as marcas da perversidade e do mal absoluto que se esgueiram pelas filigranas e cipoais jurídicos que nos são tão próprios.

Em fevereiro de 2020 já estava disponível ao planeta o conhecimento de que as populações de risco de morte pela COVID-19 eram a dos idosos, a dos obesos, e de pacientes crônicos de diabetes mellitus e hipertensão arterial, a saber, as mais frequentes do mundo ocidental, e respectivamente dependentes dos sistemas previdenciários e de saúde pública, estes por sua vez construídos sob valores dos direitos fundamentais de nossa Constituição, que por sua vez, são tidos como “peso para o estado” para Hitler e Bolsonaro, e seus respectivos co-líderes e seguidores. Na outra ponta, e de forma exposta às escâncaras nos trabalhos da CPI, uma política de governo baseada na (bem sucedida) imunidade de rebanho por infecção, que, como vimos acima, previsivelmente (e no caso, deliberadamente) produziria o efeito morte, com o conhecimento de quais grupos seriam excluídos da vida, somando-se ainda que em pouco tempo saberíamos também que pobreza e raça seriam determinantes ainda mais fortes que os primeiros.

Não seria qualquer exagero ou ilação indevida atribuir a Bolsonaro e seus cúmplices ativos e passivos a ideação homicida em massa se confrontarmos os fatos com o arcabouço ideológico perverso e manifesto de longa data deste patético canalha, que ao contrário de seus congêneres históricos não é dotado intelectualmente o suficiente para deixar na sutileza suas intenções e instintos.

Ficará assim a CPI com um gosto de oportunidade perdida de um enfrentamento da situação com o necessário senso de proporção. As grandes tragédias históricas causadas pelo homem não são lápides estáticas e as lições do passado devem ser vividas como um texto a ser permanentemente escrito, lido e reinterpretado, de forma que, presumidamente, a responsabilidade e a extensão dos significados morais e legais é dinâmica e progressiva, e as transgressões que colocam as vidas e a democracia em risco devem ser percebidas com rigor cada vez maior, pois também, presumidamente, o conhecimento e o tempo nos cobram tal comportamento. Daí o senso de proporcionalidade: jamais se justificaria (e não se justifica) qualquer leniência na compreensão de situações que colocam em risco e que resultaram em mais de 600.000 mortes.

Teríamos sim que proceder com um mínimo de ousadia e dar um passo adiante da atual compreensão formal do termo “genocídio”, sob o risco de não deixar uma clara mensagem para a história das democracias e assim, renunciar à função pedagógica da história. E se deixaremos esta dívida na questão de método, assim também o faremos na questão prática, se olharmos com cuidado o que ocorreu com as populações indígenas que viram seu destino ruir com o desaparecimento de seus líderes, que ainda que em números não tão dilatados, verão a extinção de suas culturas línguas e tradições, constituindo assim o significado mais puro do que seria a eliminação de um gênero – ou genocídio.

Infelizmente, no que depender do relatório final da CPI da Pandemia, não será desta vez que verei um incêndio ou um congelamento. Seguirei, involuntariamente, neste “tropicalismo”.

 Nelson Nisenbaum

Nelson Nisenbaum é médico graduado pela Santa Casa de São Paulo, especialista em Clínica Médica e chefe do Centro de Referência de Especialidades do Rudge Ramos, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista.

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