Por Ademir Assunção, poeta, jornalista, no Facebook
Lendo “Não Diga Que a Canção Está Perdida”, a biografia de Raul Seixas, muito bem escrita pelo meu amigo Jotabê Medeiros, impossível evitar o turbilhão de lembranças que vão saltando na mente. A cada parágrafo, paro e penso no que eu estava fazendo nos anos que pontuam a narrativa. O que acontecia na minha existência enquanto o trem de Raul rodava nos trilhos alucinantes de sua própria vida e obra.
A primeira lembrança que vem à mente é do ano de 1973: aquele magrelo esquisito cantando uma música na televisão. Meu Deus, o que era aquilo? “Eu devia estar feliz pelo Senhor ter me concedido o domingo pra ir com a família no jardim zoológico dar pipoca aos macacos / Ah, mas que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado / Macaco, praia, carro, jornal, tobogã, eu acho tudo isso um saco”. Tudo era muito diferente naqueles anos, mas Raul era mais diferente que tudo.
A segunda lembrança é do mesmo magrelo esquisito cantando outra música, de novo, na televisão: “Eu sou o seu sacrifício / A placa de contra-mão / O sangue no olhar do vampiro / E as juras de maldição (…) Eu sou a mosca da sopa / E o dente do tubarão / Eu sou os olhos do cego / E a cegueira da visão”.
O que acontecia na cabeça daquele distante garoto, de 12, 13 anos de idade, diante das palavras e sons e roupas e gestos daquele magrelo esquisito cantando na televisão? Será que aquele garoto estava assinalado para viver uma vida diferente, será que estava contaminado por algum vírus que o faria ter pensamentos esquisitos e o levaria a alimentar o desejo de escrever, ele mesmo, versos como aqueles, algum dia?
Não sei explicar o impacto que aquelas aparições causavam na cabeça daquele garoto. Eu não pertencia a uma família de intelectuais. Não havia livros na minha casa. Havia apenas o rádio e a televisão, onde eu ouvia outras músicas como “Alegria, Alegria” (Caetano Veloso), “Disparada” (com Jair Rodrigues), “Menino da Porteira” (com Sérgio Reis), “As Curvas da Estrada de Santos” (Roberto Carlos), “Apenas um Rapaz Latino-Americano” (Belchior), “Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua” (Sérgio Sampaio).
Eu não sabia que aquelas canções se gravariam fundo na minha memória. Mais que isso: que algumas delas acabariam modificando os rumos da minha própria vida.
Eu não sabia o que queria ser na vida. Já havia pensado em ser astronauta. Depois, arqueólogo. Em seguida, engenheiro elétrico. Mas acabei poeta. E, por extensão, jornalista. Era preciso ter uma profissão – e poeta, todos sabem, não é uma.
Sem ter a mínima ideia do que aconteceria nos anos seguintes, abandonei a maluquice da engenharia elétrica e embarquei para Londrina, para fazer o curso de jornalismo. Dali pra frente, tudo aconteceu numa velocidade vertiginosa.
Seis meses antes de me formar já estava trabalhando na Folha de Londrina, um jornal incrível na época, com uma equipe fantástica de jornalistas. Em pouquíssimo tempo, lá estava eu entrevistando Mário Quintana em Porto Alegre, Augusto de Campos, em São Paulo, Caetano Veloso, em Londrina mesmo, quando esteve lá com a turnê do show Velô.
E, inacreditavelmente, cobrindo o lendário festival da lama de Águas Claras, se não me engano em 1984. Num zás-trás, de repente, me vejo frente a frente com aquele magricela esquisito, sentado numa estrutura de madeira no camarim, uma enxurrada de água e lama passando debaixo de nossos pés.
Sim, lá estava eu conversando com ninguém menos que Raul Seixas, aquele cara que havia rachado ao meio minha cabeça e mexido nas minhas sinapses cerebrais quando eu ainda era um garoto.
Três ou quatro anos depois, tive meu segundo encontro com Raul – desta vez na sua casa no Butantã (São Paulo). Esse foi um encontro mais longo, umas duas horas. Fui entrevistá-lo para o Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo, acompanhado pelo fotógrafo e amigo desde então, Juvenal Pereira. Se não estou enganado, fomos os primeiros a noticiar que Raul estava preparando um novo disco: “Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!”, depois de uma internação na Clínica Tobias.
Foi uma conversa maluca. Raul alternava momentos de extrema lucidez com algumas falas elípticas. Parecia que estava sonado. Talvez tivesse tomado algum ansiolítico. Se não me falha a memória, ele chegou a mencionar diazepam.
Naquela tarde, a impressão que tive de Raul foi de um cara bastante fragilizado. O encontro aconteceu em 1987, dois anos antes da sua morte. Talvez não o tenha encontrado num dos seus melhores dias. Mas era Raul Seixas, caramba! O cara que incendiou a cabeça daquele garoto de 12 anos com os versos: “Eu que não me sento no trono de um apartamento / com a boca escancarada, cheia de dentes, / esperando a morte chegar / Porque longe das cercas embandeiradas, que separam quintais / No cume calmo do meu olho que vê / Assenta a sombra sonora de um disco voador.”
Não me lembro como acabei conhecendo Paulo Coelho, mais ou menos na mesma época, algum tempo depois ou antes da morte de Raul. Lembro que uma grande amiga, Soninha Higa, havia me apresentado Nelsinho Liano Jr. Ambos eram de Marília, amigos de infância. Nelsinho trabalhava no Jornal do Brasil e havia criado uma editora para publicar “Manual Prático de Vampirismo”, livro que escreveu em parceria com Paulo Coelho. Talvez o tenha conhecido através do Nelsinho. Talvez não.
Realmente não lembro. Só sei que trocamos algumas cartas ou telefonemas e em junho de 1990 fui convidado – pelo próprio – para entrevistá-lo no programa Roda Vida, junto com Caio Fernando Abreu, Ricardo Kotscho e outros. Depois do programa, fomos jantar. Mantivemos contato, nos encontramos mais uma ou duas vezes e depois, nunca mais. As conversas eram sempre muito inteligentes e agradáveis.
Todas essas recordações me vieram à mente lendo a biografia escrita por Jotabê Medeiros.
Com o absoluto baixo-astral rondando nossos calcanhares, com tanta gente cinzenta, mentirosa, escrota e truculenta dando as cartas, sou grato, gratíssimo, por Raul ter entrado na minha vida e por meu amigo Jotabê me fazer lembrar disso tudo, neste momento, neste país, neste continente, neste planeta, nesta galáxia – enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí.
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Foto de Juvenal Pereira
(da entrevista que fizemos com Raul em 1987)