E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, conta a história de um menino de nove anos que hoje é um certo Senhor C.
Á guisa do livro de um certo Senhor C, que completou 80 anos recentemente e conta, mezzo a mezzo, ficção e realidade, sua vida em Roma aos nove anos, o nosso Senhor C, também rebobina sua vida para os quase 10 anos de idade e fala do pai em Vilsa Isabel.
Conheçam o pai do nosso Senhor C. Se non è vero, è ben trovato.
“Desde menino o Sr. C era chegado a inventar histórias. Quando se tornou o melhor jogador de botão da rua, temido por todos os rivais muito mais galalaus que ele, inventou que tinha aprendido a jogar bem daquele jeito com o pai. E fez mais: disse que o melhor botão que seu pai tinha era um de coco que ele mesmo que fez. Isto é, nada de galalite, nada de botão de capotes de lã, o craque do time era feito com material verde – o pai era ecologicamente correto antes do tempo. E que fosse a bola, que fosse, dadinho, de feltro ou disco, o seu pai se sagraria vencedor contra qualquer um, até mesmo eu.
Não dava para inventar que seu pai jogava bola. Aí seria inventar demais, passaria do ponto. Seu pai era do tipo que, enquanto a seleção jogava diante de uma Argentina, ele passava roupa assoviando “Vendedor de caranguejo”, na versão original. Por isso, o Sr. C achou engraçado quando ouviu um conhecido do seu pai, não se sabe nem quando nem onde, puxar assunto sobre futebol com seu pai, que apenas balançava a cabeça assim assim, como se a demonstrar interesse. Aprendeu a lição ali segundo a qual aquele “conhecido” realmente não conhecia seu pai. Caso contrário, viriam à tona outros assuntos que não fossem futebol.
Praticamente durante a vida inteira, o pai do Sr. C foi trabalhar de terno e gravata e bolsa a tiracolo no centro da cidade, para onde ia de ônibus. Em dias de folga, ele usava carteira tipo capanga com um pente Flamengo dentro – salvo engano, este pente de plástico vinha dentro de uma embalagem de papel.
O Sr. C via aqueles cabides da Ducal dentro do armário e se perguntava se um dia ele iria usar paletó também para trabalhar. Não era para dizer, mas o Sr. C brincava de hélice de avião com os cabides. Coisa de criança, decerto, que não pode ver uma pasta de documentos sem que o diabo o tente para revirar.
Cá entre nós, o Sr. C, orgulhosamente, diz que só usou paletó uma vez na vida: no dia de seu casamento. O seu pai também abandonou os paletós quando a aposentadoria se aproximou, mas manteve a elegância. Agora ela andava de blazer e carregava seus papeis numa bolsa de couro mais moderninha do que as 007, que à época já estavam meio ultrapassadas, assim como os pentes Flamengo.
Foi um tanto inusitada a reação de todos quando o pai do Sr. C chegou ao lar com uma coleção completa dos livros do Freud da Standard. Depois vieram os de Lacan e outros mais. Quer dizer, observou-se no homem uma mudança, que não era radical, era outra coisa. Era como se ele estivesse disposto a passar a vida, a própria e a dos outros, a limpo, como se finalmente pudesse se dedicar um pouco mais a desvendar os supostos enigmas da civilização.
Foi mais ou menos nesta época que a gente reparou que ele começou a falar com muita frequência o vocábulo “exatamente”. Justamente em um momento da vida dele em que ele tinha deixado muitas certezas para trás lhe chegara um cacoete um tanto ridículo.
Muitos desses livros completam as estantes daqui de casa, pois coube a mim a guarda temporária de tal acervo. De vez em quando, o Sr. C diz a si mesmo que haverá de ler e reler estes livros em homenagem ao pai, que se foi faz um tempinho. E por isso sem mais nem menos solicita o empréstimo de um livro ou outro de nossa biblioteca sempre que nos visita.
Confesso que fazemos vista grossa e que sabemos que o Sr. C anda surrupiando alguns livros do acervo de seu pai, o que seria uma atitude um tanto insólita, uma vez que todos aqueles livros são seus por direito.
Para o Sr. C talvez seja um momento de foro íntimo topar mais uma vez com a caligrafia do pai, absolutamente expressiva como eram as caligrafias de outrora, que carregavam as marcas da personalidade de seu dono ou com o marcador de páginas com o alfabeto egípcio, fruto de uma visita a uma exposição sobre o Egito no Museu da Casa França-Brasil, que o Sr. C comprara para si mas resolveu no último instante oferecer a seu pai como um presente.
“Enquanto eu viver, é engraçado pensar isso, eu terei o meu pai por perto devido às anotações de leituras que ele fez. Me sinto como se eu estivesse lendo por sobre os ombros dele”, disse o Sr. C de uma maneira que nos pesou no coração.
E, por derradeiro, o Sr. C saiu com uma dessas: “Não sei direito por que a gente acha que pai transa, e mãe, não. Vai ver que essa ideia excêntrica é fruto de um catolicismo mal digerido entre nós, gazeteiros de missa, que acha que toda mãe tem que ser santa feito personagem de canção de Vicente Celestino”.
E continuou o Sr. C, revelando-nos uma certa inconfidência: “Eu era bem criança quando, certa feita, entrando de súbito no quarto de meus pais, vi os dois trocando carícias. Vi o volume na calça do pijama de meu pai e minha mamãe se enfiar nas cobertas fazendo cara de paisagem. Alguma coisa mudou na minha vida ali. Além de admitir que talvez ela fosse mais dele do que minha, eu quereria saber quando o meu piu-piu subiria daquele jeito.”
Como dissemos, o Sr. C sempre foi chegado a inventar histórias. Sua mulher, entretanto, acha que ele tem lido Freud demais. E, sem mais nem menos, mandou-lhe à roça para descansar. E assim foi feito. O Sr. C passou um bom tempo sentado à sombra do alpendre, com bolsa a tiracolo, penteando os cabelos com um pente Flamengo que ninguém sabe onde ele arranjou.”