E a nossa coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, volta com o poeta Pablo Neruda, aqui numa análise sobre o filme “O Carteiro e o Poeta”, filme de 1994. Recentemente, o Netflix produziu uma versão deste filme, “Ardente Paciência”, mas fiquemos com o singelo e tocante original.
“O carteiro e o poeta (1994)
Começo pelo destino. No filme belgo-franco-italiano “O carteiro e o poeta”, há uma enorme coincidência entre a vida e arte, para além da estética: tal qual o personagem que interpreta, o ator morre. Seu coração frágil não suportou o peso da vida.
Não é a morte do ator, entretanto, o que me impressiona nesta película. Tem sido, entre outros aspectos, um conjunto de cenas que, tendo se despregado do filme em si, vêm a lume quando eu me recordo do filme. A primeira é do carteiro dizendo “Beatrice Russo” ao gravador. A timidez diante da máquina, o ar de ingenuidade chapliniana filtrado pelo neorrealismo italiano, tudo isso me comoveu e me marcou fundo e se faz presente.
A segunda é de uma frase do carteiro dita ao poeta. Cito-a de cabeça:
“A poesia não pertence a quem a escreva, mas a quem dela depende”. Tal frase fez de mim um poeta mais consciente do meu ofício, isto é, do quanto minha poesia depende de outros inúmeros fatores para além de mim, de tantos livros e de tanta gente.
“Eu beijo na boca de hoje as lágrimas de outra mulher”, como diz o mestre Aldir Blanc na canção “50 anos”.
Com tanta interdependência, eu também posso de consciência tranquila roubar ideias de poemas sem deixar de ser original, sem ser um mero plagiador. É uma conversa mais longa, reconheço, mas por ora é bom dizer que nem sempre a originalidade tem de ser o ponto principal da busca poética.
Olho para o carteiro e me lembro de tio Paulo, irmão de minha mãe, que tem muito do físico do ator. Mas as semelhanças param por aí. O máximo que tio Paulo consegue fazer é uma interpretação mequetrefe do saudoso Costinha.
Coitado de tio Paulo. Enquanto ator, limita-se a interpretar a si mesmo. Isso não deveria ser de todo ruim.
Agora o italiano Massimo, com perdão pelo infame trocadilho, é o máximo! Que ator! Como ele incorpora a personagem do homem pobre que aos poucos se descobre poeta com senso de proporções, uma vez que sabe que um poeta pequeno, praticamente irrelevante e ainda assim poeta.
Foi engraçado vê-lo, nas fotos do Google, à paisana, vestindo camisa branca e calças jeans. Como a sua indumentária colorida contrasta com as roupas em tons de cinza de sua personagem. O confronto entre os dois, entre o ator e a personagem, foi uma espécie saudável de desencantamento. Ou de encantamento possível, à maneira do Carnaval brasileiro com seus ritos de inversão.
Admiro todos os que são capazes de arrancarem de si múltiplos seres.
Quando revi o filme, achei-o muito mais escuro do que eu imaginava. Pareceu-me proposital. O enquadramento de muitas cenas enfatiza, para mim, o jogo entre o claro e escuro, tão importante para a criação de uma atmosfera expressivamente eficiente em fotografia.
Em outros momentos, chamou-me a atenção o tratamento dado à película, que também me pareceu decisão deliberada com fins expressivos. Às vezes aparecia um tom de sépia em uma cena, como sinal de nostalgia. Às vezes, o uso do preto e branco, como é o caso da cena da manifestação ao fim do filme.
Enfim, “O carteiro e o poeta” é um filme que nos chama a atenção para outros filmes. Com isso, torna-se ainda mais encantador.
A trilha sonora, alinhada com o que foi dito acima, nos remete ao que de melhor produziu o cinema italiano. Penso obviamente em Nino Rotta, grande contribuidor da atmosfera dos filmes de Fellini.
Enfim, a trilha sonora é bonita, não propriamente inovadora. Há nela um quê de homenagem ao cinema italiano tanto quanto à sua gente. De tal perspectiva, julgo haver correspondência entre a cena da gravação de Paolo e a cena emblemática de Cine Paradiso, a da sucessão dos proibidíssimos beijos na boca.
É certo que hoje em dia se é possível fazer tais “retrospectivas” com recursos do celular, inclusive com trilha sonora. Eu mesmo já vi algumas delas nas redes sociais. Funcionam bem com inegável efeito retrospectivo. Mas não é cinema. Guardemos bem o senso de proporções. Não nos esqueçamos: no cinema, a sucessão de imagens organizadas com intuitos expressivos, quando bem-feita, é para muitos olhares, para hoje e para amanhã.
Parece maluquice, mas procuro entender o filme tanto do ponto de vista da recepção quanto da criação.
Sem querer fazer uma frase de efeito, é possível dizer que em arte o objetivo não é a vida real nem o realismo em detalhes, mas o típico, que nos leva mais longe na aventura de entender um pouco da vida.
O fio-condutor do enredo é o desenvolvimento da amizade entre um poeta consagrado como Neruda, no exílio, e um homem sem profissão que, devido à chegada de Neruda, se faz de carteiro em uma ilhota italiana no pós-guerra – pela pobreza, pelo ar de província de poucas oportunidades, o lugar é mais parecido com Nápoles do que com as cidades do norte da Itália. Basta dizer que se trata de um lugar que, mesmo sendo cercado de água, depende de navios para o abastecimento de água potável.
Os personagens secundários são tipos de uma comédia de costumes: a amada; a tia que é uma fera; a mulher de Neruda, de sensualidade madura, o pai pescador de poucas palavras; o amigo inventor; o político elegante, empolado e espertalhão; o padre anticomunista.
O filme resulta em uma coisa simples, bonita, talvez açucarada demais para os padrões vigentes da sensibilidade de hoje.
Para o azar dos poucos sensíveis, é belo ver como o encontro de algumas pessoas ao longo da vida são capazes de nos transformar. Se Neruda é o mestre no primeiro momento, depois se torna também um pouco discípulo, como é típico e desejável de tais relações. Com um olhar de encantamento, de véspera de lágrimas, o poeta Neruda se encanta com a grande transformação que ajudou a provocar em seu fiel amigo que um dia quis aprender a fazer uma metáfora.
Ou terei visto demais?
Neruda foi, é e será um poeta de sua gente, de gente como a gente, dos trabalhadores explorados e sem voz. Por isso e por muito mais, o filme ainda me é encantador. É uma brisa marinha. É o próprio mar, com suas constantes oscilações, assim como a vida.
Que nosso coração, por mais frágil que seja, suporte as adversidades dos nossos tempos. Eu não quero mudar nem país nem de planeta. Deem-me vida, que é o que me basta.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.