Nerudinhas

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Mais uma prosa poética da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Nestes versos em prosa, nosso César nos traz Neruda. César, que neste 2022 escreveu todas as semanas para os leitores do Bem Blogado. Afinal, César aprendeu com Pablo Neruda que “escrever é fácil. Você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio coloca ideias.”

Prezado Washigton, é bem provável que os próximos textos da coluna sejam relativos ao poeta chileno Pablo Neruda. Que o mês de janeiro de 2023 seja o mês da esperança.




Procuro na bagunça da minha biblioteca a minha edição de “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”, do poeta chileno Pablo Neruda (1905-1973). Não a encontro.

Também não encontro a bela edição de um livro de Vinicius de Moraes com poemas dedicados à amizade entre ele e Neruda.

Combino comigo mesmo que amanhã irei resgatá-los, vasculhar as prateleiras, derrubá-las, se preciso for: eu os quero de volta perto de mim.

Se não encontrá-los, não haverá nada a fazer senão comprar novas edições dos mesmíssimos livros, levando água à hipótese segundo a qual não sei viver sem tê-lo por perto, ao alcance dos olhos.

Uma edição digital não me traria contentamento. Eu preciso do livro físico. Dai a César o que é de Cícero!

Até onde posso ir, a primeira menção ao poeta Neruda me veio em um verso da canção “Trocando em miúdos”, de Chico Buarque. É o famoso disco da samambaia, que assim ficou conhecido porque na capa há um Chico Buarque ainda jovem a sorrir (o disco é de 1978, Chico tinha um pouco mais que trinta anos) com uma samambaia ao fundo.

Que disco é o do samambaia!

“Trocando em miúdos”, para quem não conhece, é uma poderosa canção de separação. Separar-se é algo que requer grande habilidade, é um evento de intensa carga emocional e para mim só comparável ao luto. Não há como evitar a melancolia da perda, por vezes o orgulho ferido e a incômoda sensação de que, se em algum momento alguma coisa tivesse sido feita, haveria espaço para uma reconciliação, para uma renovação dos laços afetivos, quiçá em outros moldes.

Enfim, uma confusão de sentimentos.

A canção capta o momento da partilha dos bens simbólicos, ou seja, daquilo que tem valor sentimental, no que é difícil colocar um preço. Fica a fitinha do Bonfim, leva-se o disco do Pixinguinha e por aí vai até a fulminante conclusão do último verso: “Devolva-me o Neruda que você me tomou/ E nunca leu”. 

É aquela coisa, de vez em quando se pega um livro emprestado, mas não se lê. Talvez por se achar que a mera posse do livro seja capaz de percorrer toda a cadeia de transmissão.

Mas não se trata de empréstimo! No caso específico do verso, há ainda o uso de “tomar” indicando pegar à força, com violência simbólica. Não se trata de pegar emprestado, o sentido está mais próximo do “Perdeu!” que os bandidos dizem quando nos roubam.

E o fato de nunca ter lido ganha, com a primeira parte da frase, forte teor simbólico. Para que, afinal, se pega à força um livro de alguém e não se dá ao menos o trabalho de lê-lo? Que capricho é esse?

Devolver o livro de Neruda significa na minha leitura devolver a capacidade de amar, de se falar do amor tão desabridamente.

Que canção triste e dorida.

Um amigo meu achou em um sebo uma edição antiga do “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”. Deve ter cogitado dá-lo a uma namoradinha que tinha à época, mas mudou de ideia antes de terminar a dedicatória e acabou dando  livro para mim.

É meio inusitado ver um risco justamente na dedicatória; mas é assim a história deste livro.

Acho que ele fez bem. Eu, pelo menos, cumpri o pacto de leitor e li o livro de cabo a rabo. Cheguei até decorar um dos poemas – do qual atualmente só me lembro de trechos. Mas posso lhe afiançar que se trata de um poema muito poderoso, capaz de encantar muitas pessoas.

Em especial, as mulheres que amo. Afinal de contas, não é todo dia que uma mulher ouvirá da boca de alguém versos tais como:

“Para que me escutes,

Minhas palavras

Adelgaram-se como as pegadas

De gaivotas nas praias

Colar, cascavel ébrio

Para tuas brancas mãos, suaves como as uvas”

Eu sei explicar o que cada imagem provoca? Sim. Mas temo dessa vez quebrar o encanto do poema, dissecando-o. O amor não pode ser enfadonho. Não posso, entretanto, deixar de assinalar a intenção do poeta: ele quer ser lido pela mulher amada. Do lado de lá a musa destinatária (aquela que conduz o destino?) está lendo o que foi escrito e que suas mãos são brancas e suaves.

Não é o caso de se perguntar qual creme hidratante que ela usa, trata-se de um artifício poético.  Ouça como as “uvas” já estão praticamente contidas em “suaves”. É uma aproximação sonora que não se perdeu com a tradução.

Enfim, que poeta lírico é Neruda. E leio no seu livro de memórias que “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada” foi escrito quando ele era jovenzinho.

Por causa exclusiva de Pablo Neruda, sempre cogitei ir ao Chile para conhecer de perto a terra natal do poeta. Quis, ainda quero, conhecer-lhe a geografia para além do mapa da América Latina. Quero ir a Temuco tanto quanto a Tuluh quanto a Itabira, cidades natais de Neruda, de Dylan, de Drummond, respectivamente.

Conhecer-lhes o relevo e sua gente. Se as cidades não forem encantadoras, que meu gesto enfatize a capacidade criadora dos poetas.

Como me ressinto de conhecer mal, muitíssimo mal, os argentinos Julio Cortazar e Jorge Luiz Borges. Sinto-me acanhado intelectualmente por conhecer tão pouco autores de fora do meu país.

Serei poeta depois desse falimento?

Por derradeiro, não deixa de ser irônico batizar com o nome do presidente chileno Salvador Allende, amigo de Neruda, uma das avenidas da Zona Oeste daqui da cidade do Rio de Janeiro. Justamente o presidente que, em 1973, foi deposto em um golpe de estado encabeçado por Augusto Pinochet. 

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