Neymar e a vitória do jogo conservador

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Por Felipe Arrojo Poroger, publicado em Carta Capital – 

O que faz com que o Halloween de um boleiro seja tão interessante em um momento tão delicado?

Neymar
“Ai, se jogássemos futebol como o Neymar…”

Poucos anos parecem tão comemorativos como 2017. Não tanto, claro, por seus próprios acontecimentos, mas, sim, por eventos que agora coincidem de completar décadas ou séculos. A lista é longa: quinhentos anos de luteranismo, cem anos da Revolução Russa, cinquenta do Sgt. Peppers, dez do iPhone e, no momento em que escrevo, completaram-se cinquenta horas desde que Neymar cortou o cabelo. Ficou bom.




E por falar no astro brasileiro, também chegou ao meu conhecimento que ele comemorou o Halloween vestido de Coringa, cantou Justin Bieber em reunião de amigos, além de ter feito uma tatuagem semelhante à de Demi Lovato – o que leva à primeira pergunta óbvia: será que os dois tiveram um caso? Retomada a consciência, surge a segunda: que raios eu tenho a ver com isso?

Por motivos de inveja, torço para que a primeira resposta seja ‘não’. A  segunda, no entanto, é mais nebulosa: afinal, embora seja evidente que essas notícias não me digam respeito, algo fez com surgissem em meu computador e outro algo, talvez mais vergonhoso, fez com que eu ali clicasse. E a epidemia é geral: com maior ou menor ressonância, todos estes fatos ocuparam posições de destaque em listas de mais lidas de diversos portais online.

Há quem diga que não seja novidade: a vida de celebridades sempre gerou fascínio. E a tendência lógica é que, tão maior o grau de conectividade, de popularização de ferramentas de captação de vídeo/som e velocidade em compartilhá-las, nós sejamos cada vez mais bombardeados por manchetes fúteis. O fenômeno, no entanto, merece um pouco mais de atenção.

Em 24 de julho, o cientista político Mathias Alencastro publicou, na Folha de São Paulo, um belo artigo intitulado “Investida do PSG sobre Neymar é jogada diplomática do Qatar”, no qual expunha como a contratação do jogador pelo clube francês servia aos interesses do Qatar, sede da Copa do Mundo de 2022.

Em linhas gerais, o que Alencastro sugeria é que o país e seu xeque Hamad bin Khalifa al-Thani, donos do PSG desde 2011, usariam Neymar como peça estratégica para fortalecer a sua presença geopolítica na Europa, em um momento em que o país “está sendo hostilizado pelos seus vizinhos por causa do seu dinamismo econômico e crescente reconhecimento internacional”.

Estimulado pelo artigo, me vejo às voltas com uma especulação semelhante: para além do futebol, será que Neymar também teria um uso para o Brasil? O que faz com que a vida de um boleiro seja tão interessante em um momento tão delicado? É um paradoxo inaceitável? Ou, ao contrário, a perpetuação do autoritarismo da política brasileira depende do interesse popular pelas farras do craque?

Vamos lá: Neymar encarna a superação. Não, claro, no sentido que a Nike ou a Adidas dão à palavra, mas, sim, numa acepção um pouco mais refinada: a crença de que um certo contexto social não é determinante para a trajetória do sujeito. “Neymar nasceu na periferia de Mogi das Cruzes e, agora, vejam só…”.

Por essa lógica, ascender socialmente torna-se uma questão de habilidade e proeza individual. O que, por inversão de raciocínio, nos leva a concluir que quem não enriquece é aquele que não se esforça.  Ser pobre ou rico deixa de ser produto de um intrincado jogo capitalista – para o qual a pobreza é necessária à manutenção da riqueza – e transforma-se em um termômetro do talento. Quanto maior a habilidade, maior a riqueza.

É aí que entra a relevância de Neymar. E o raciocínio tem, no mínimo, duas vias: 1) “Se eu jogasse futebol assim, essa seria a minha vida: carros, luxo, fama. Como não jogo, só me cabe mesmo aceitar o subemprego” ou 2) “Se me esforçar para jogar futebol assim, treinar bastante, é possível que minha vida se transforme em carros, luxo, fama”. De um lado, a resignação. De outro, a esperança. Dois termos aparentemente distintos, mas cujo produto é o mesmo: as engrenagens do capital continuam girando, as desigualdades são passíveis apenas de aceitação e não de luta. Para (a elite vitoriosa de) um país derrotado, vale.

Teoria conspiratória? Alguns meios de comunicação estão alinhados com o governo Temer, exaltando a figura de Neymar e colaborando para a manutenção de nossas aristocracias? Não, obviamente não (ou possivelmente não).

Estar, no entanto, atento ao movimento da mídia – às suas escolhas editoriais, seja por oferta do veículo ou demanda dos leitores – é um passo fundamental para entender a circulação daquilo que afeta a sociedade, nossos ânimos e projeções: no fim das contas, heróis nacionais acabam, muitas vezes, por operar – involuntariamente – como verdadeiras cortiças de fumaça, encobrindo denúncias e violações nacionais com  detalhes de seu cabelo.

No momento em que termino este artigo, em 1º de novembro, às 20h07, o principal site de notícias online do país tem em seu ranking geral de mais lidas: 1) Impacto das Panicats mexeu até com Faustão; 2)  Dinheiro, viagens, mulheres: ”conheça a vida do ‘Playboy do Pôquer; 3) Para a maioria do elenco, fim do Pânico será um pesadelo profissional; 4) Vampeta reconhece Funaro após fotos;  5) Batoré diz que atores de Velho Chico desprezaram morte de Montagner.

Não precisa de muito empenho intelectual para extrair conclusões graves (e tragicômicas) desta lista, que fala por si só. Estes serem os cinco temas de maior interesse da internet brasileira enquanto Temer aprova suas reformas é análogo a estarmos em uma casa pegando fogo e, sem grande pressa, decidirmos organizar uma rodada de Twister na sala.

Por fim, a parábola didática: quem se lembra da resposta dos patrões de Maria Angélica Lima, babá que conduzia um carrinho de bebê em uma manifestação pró-impeachment? Em carta, escreveram: “Trata-se de uma ótima funcionária de quem, a propósito, gostamos muito. (…) Ela é, no entanto, livre para pedir demissão se achar que prefere outra ocupação ou empregador”.

Retrato mais preciso impossível: o Brasil é o país em que babás são babás por preferência. Se ela preferir outra ocupação – talvez banqueira? -, está livre para buscar. Quem sabe um dia chega lá, não é mesmo? Suspiros. Ai, se ela jogasse futebol como o Neymar…

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