“As pessoas falam: ‘Tá morrendo menos gente’. Não! Não está morrendo menos gente. É que está demorando mais para as pessoas infelizmente falecerem. Não tem nada dessa balela de leveza ou de uma variante bem-vinda. A ômicron é terrível. Ela talvez seja até, pelo número de mutações que ela tem, um novo vírus. Estamos na fase inicial de um crescimento exponencial da ômicron. Não há nada de positivo, nada de leve, nada de brando na ômicron”.
Compartilhado de Construir Resistência
As palavras são do cientista Miguel Nicolelis ao TUTAMÉIA. Com dados, gráficos sobre o que está acontecendo no exterior, informações de pesquisas científicas, ele desmonta o discurso de que a ômicron é bem-vinda e aponta para o fim da pandemia.
Professor emérito da Duke University e um dos mais renomados cientistas do mundo, nesta entrevista Nicolelis alerta para a iminência de um colapso hospitalar, que pode acontecer nos próximos dias e ser maior do que o do ano passado.
Ele condena a volta às aulas sem a vacinação de crianças, a falta de testes e a decisão de reduzir o período de isolamento para os infectados. Defende o trabalho da Anvisa, aponta desdobramentos para a epidemia e traça um roteiro para o enfrentamento da doença
QUATRO EPIDEMIAS SIMULTÂNEAS E LOCKDOWN REVERSO
“Não existe ninguém no planeta que tenha dados científicos aceitáveis que possa prever o final da pandemia a partir dos dados da ômicron. Porque já estão surgindo filhas da ômicron –na Índia, por exemplo. Estão surgindo suspeitas, ainda não confirmadas, da ômicron com a delta. E temos pacientes sendo infectados com influenza e ômicron ou delta ao mesmo tempo. Temos quatro epidemias concomitantes no Brasil: a delta, a ômicron, a influenza e começou a dengue”.
Enfatiza Nicolelis:
“Este pode ser o pior momento da pandemia em termos de número de pessoas afetadas, em termos da magnitude do colapso do sistema de saúde no mundo no Brasil também. Com o agravamento do número de pessoas infectadas, inclusive médicos, enfermeiros, profissionais de saúde, estamos tendo um lockdown reverso. A ômicron tirou das mãos dos gestores brasileiros a decisão de fazer um lockdown. Porque as pessoas não estão conseguindo aparecer para trabalhar”.
Ele segue:
“A ômicron deu uma banana para os gestores brasileiros e norte-americanos. Ela falou para eles: ‘Não se preocupa, eu vou fazer o lockdown para vocês’. Eles se preocuparam tanto com a economia em primeiro lugar, que ela está fechando a economia por conta própria, com consequências muito piores”.
COLAPSO HOSPITALAR, MUTAÇÕES E CIRCULAÇÃO POR DÉCADAS
Afirma Nicolelis:
“Temos que acabar com a transmissão do vírus, primeiro porque os hospitais podem colapsar com o enorme número de casos. Segundo, porque nós podemos criar milhões de pessoas com insuficiência renal, cardíaca, pulmonar que vão precisar do SUS em grande escala”.
Há uma outra razão:
“A ômicron já está infectando animais silvestres. Estamos criando outros reservatórios na natureza para o coronavírus. Reservatórios de animais silvestres, que não eram infectados por esse tipo de vírus. Então ele vai ficar em volta da gente se a gente permitir pela explosão. Por décadas”.
E quais as consequências disso:
“O vírus vai ter outras espécies para fazer mutações. Ele pode sofrer outras mutações, interagir com outros vírus e pular de volta para o ser humano. Provavelmente, foi o que aconteceu com esse vírus original: ele passou por hospedeiros silvestres antes de passar para o ser humano”.
COMENTÁRIOS ABSURDOS E CULTURA LETAL
Ao TUTAMÉIA, o neurocientista critica políticos, cientistas e youtubers:
“Durante dois anos nós sempre corremos atrás do vírus. Nunca nos antecipamos ao que o vírus podia fazer conosco. Esse ônus é dos gestores brasileiros, que mostraram como estavam mal preparados, em todos os níveis, para reagir a uma pandemia e dialogar com os cientistas que são do ramo. Há comentários absurdos até de cientistas e de youtubers”.
Ele segue:
“Minha única esperança é que seja feita uma comissão nacional, por intervenção do STF e da sociedade civil, no Ministério da Saúde. Que se crie uma campanha de comunicação de ataque ao coronavírus, uma campanha de vacinação extrema”.
Sobre uma questão mais de fundo que emerge da pandemia, Nicolelis analisa:
“É a cultura e o comportamento que criamos enquanto civilização. Ouço as pessoas dizerem: ‘Mas eu estou há dois anos enfurnado em casa. Não tem jeito, eu preciso fazer a festa de Natal, o réveillon’. Mesmo sabendo que o risco é a morte! A cultura do hedonismo, do consumismo, a nossa sincronização mundial por padrões de vida. Se criou uma cultura do século 21 que é letal”.