Por Paulo Motoryn, compartilhado de The Intercept Brasil –
Médica que CPI da Covid suspeita ser parte do “gabinete paralelo” de Bolsonaro fez encontros em Brasília sem registro em agendas oficiais.
A MÉDICA NISE YAMAGUCHI, que depõe à CPI da Covid nesta terça-feira, 1º de junho, foi apontada como “conselheira paralela” de Jair Bolsonaro pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e o diretor-presidente da Anvisa, o militar da ativa da Marinha Antonio Barra Torres.
Agora, documentos mostram que ela frequentou o Ministério da Saúde, ao longo de seis meses, para reuniões nos gabinetes do então ministro interino Eduardo Pazuello e do secretário-executivo – o número dois da pasta – Elcio Franco. Nise estava tão à vontade que escalou até os irmãos para encontros com a área responsável pela indicação de medicamentos ao SUS.
Nenhuma das visitas consta nas agendas oficiais de Pazuello e de Franco, nem foi divulgada publicamente. Mas elas indicam a influência direta da entusiasta da cloroquina sobre o alto escalão da pasta. As reuniões secretas são mais um indício da existência do que a CPI da Covid chama de “ministério paralelo”: um grupo de negacionistas que influenciou a tomada de decisões de Bolsonaro na pandemia, contrariando evidências e políticas de saúde.
Os registros das ida da médica ao ministério estão em documento que recebi via Lei de Acesso à Informação, no qual constam os registros de todos os visitantes da sede do ministério em Brasília em 2020. De acordo com a lista, Nise Yamaguchi esteve no prédio em pelo menos quatro datas em junho, julho e dezembro de 2020. Em duas delas, a médica passou pela recepção mais de uma vez, nos períodos da manhã e da tarde – o que indica que teve reuniões que ocuparam todo o dia.
As visitas secretas dos Yamaguchi ao Ministério da Saúde
Da portaria ao gabinete de Pazuello
Em resposta a requerimentos feitos por senadores da oposição, a Casa Civil da Presidência entregou à CPI documentos que mostram quatro visitas de Nise ao Palácio do Planalto. Agora, os registros de acesso ao Ministério da Saúde mostram que a influência da médica e de seus irmãos também foi exercida diretamente no comando da pasta.
As reuniões de Nise Yamaguchi e seus irmãos no Ministério da Saúde, porém, não haviam sido reveladas nem mesmo pela médica.
Nise se encontrou pela primeira vez com Bolsonaro após o início da pandemia de covid-19 em 6 de abril de 2020, quando, a convite dele, foi a um almoço no Palácio do Planalto, em Brasília. À época, o presidente já reclamava publicamente da resistência do então ministro Luiz Henrique Mandetta em defender o uso maciço da cloroquina contra a covid-19.
Dois meses depois do primeiro encontro com Bolsonaro, em 10 de junho, Nise pisou pela primeira vez no Ministério da Saúde. À época, Eduardo Pazuello já era ministro interino.
A lista de visitas indica que a médica entrou às 9h41 no prédio e foi encaminhada ao órgão descrito como “GM” – identificação usada para o gabinete do ministro da Saúde. Foi um dia cheio. Nise voltou a passar pelas catracas do prédio à tarde, às 14h50. Desta vez, foi encaminhada à “SE”, sigla para a secretaria-executiva, então comandada pelo coronel da reserva do Exército Elcio Franco.
Naquele dia, como em todas as outras visitas de Nise à sede da pasta, as agendas oficiais de Pazuello e Franco não registraram os encontros. A Lei de Conflito de Interesses, de 2013, prevê que agentes públicos em cargos de confiança ou de comando divulguem diariamente suas agendas de compromissos, mesmo que reservadas a despachos internos. Quando se trata de ministros e secretários-executivos, a publicação é obrigatória e visa a transparência na administração pública. Nesse caso, a falta de anotação indica que Pazuello e Franco acharam melhor esconder as visitas de Nise.
Naquele 10 de junho, ela não estava sozinha. Foi acompanhada da irmã, Greice Naomi Yamaguchi, que entrou no prédio nos mesmos horários que ela. Greice sequer é médica. Diz ser graduada pela Fundação Getúlio Vargas e ter feito mestrado e doutorado na França em administração de empresas. Participou do governo de transição de Bolsonaro, é adepta de teorias da conspiração e tentou carreira política pelo Novo e pelo PSL.
Nessa e em suas outras visitas ao Ministério da Saúde, Greice Naomi tomou um rumo diferente da irmã: foi encaminhada ao oitavo andar do prédio. Ali, funciona a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde. É o setor responsável por “formular e implementar políticas nacionais de assistência farmacêutica”, fomentar “parcerias público-privadas na produção de produtos estratégicos” e “coordenar o processo de incorporação e desincorporação de tecnologias em saúde no âmbito do SUS”.
Aquela não havia sido a primeira visita de Greice Naomi ao ministério. Na tarde de 6 de abril – logo após a irmã Nise almoçar com Bolsonaro –, ela e outro irmão, o cirurgião plástico Charles Takahito Yamaguchi, dono de um consultório na Avenida Brasil, uma das regiões mais caras de São Paulo, já haviam ido ao oitavo andar do prédio em que funciona a pasta.
Dois dias depois, em 12 de junho, as duas irmãs voltaram ao ministério para reuniões no período da tarde. No dia seguinte, 13, um sábado, tiveram reuniões no Palácio do Planalto com o então assessor da Presidência Arthur Weintraub.
Em 18 de junho – ou seja, seis dias após a terceira visita de Greice –, a secretaria passou a ser comandada por Hélio Angotti Neto, médico e discípulo de Olavo de Carvalho, guru da extrema direita brasileira. Ele é mais um defensor do inexistente tratamento precoce da covid-19, que inclui a cloroquina, e chegou a encomendar um manual com orientações sobre a medicação.
Depois da posse de Angotti, Greice Naomi não voltou ao ministério. Mas Nise, sim. A médica voltou a aparecer na lista de visitantes do Ministério da Saúde pouco mais de 15 dias depois, em 2 de julho. Desta vez, passou pelas catracas em dois horários diferentes, às 10h40 e 16h58. Nas duas ocasiões, foi enviada para o gabinete do ministro interino Pazuello.
A médica voltaria a Brasília em 8 de setembro, quando se reuniu com o assessor da Presidência Filipe Garcia Martins no Palácio do Planalto. A última visita dela ao Ministério da Saúde em 2020 ocorreu em 30 de dezembro, quando foi encaminhada à secretaria-executiva comandada por Elcio Franco.
Um levantamento mostra que, enquanto Nise frequentava sigilosamente o Palácio do Planalto e o Ministério da Saúde, de março de 2020 a janeiro de 2021, o governo Bolsonaro implementou ao menos quatro medidas federais promovendo ou facilitando a prescrição da cloroquina e da hidroxicloroquina.
Em março, retirou a exigência de receita médica especial para pacientes que recebem os remédios. Em maio, um protocolo do Ministério da Saúde recomendou uso de cloroquina em todos os casos de covid-19, inclusive com sintomas leves; em junho, flexibilizou a prescrição de ivermectina, nitazoxanida, cloroquina e hidroxicloroquina. Em janeiro deste ano, lançou o TrateCov, aplicativo que indicava automaticamente cloroquina em casos de suspeita de covid-19.
Nesse período, Bolsonaro também atuou como garoto-propaganda do remédio, usando o currículo de Nise para sustentar seus argumentos. Contaminado pela covid-19 no início de julho, ele disse a jornalistas, no dia 7 daquele mês, que usou cloroquina para tratar a doença.
“Estou muito bem e credito isso não só ao atendimento dos médicos, mas pela forma como ministraram a hidroxicloroquina, que [teve] reação quase imediata. Poucas horas depois [de tomar], já estava me sentindo muito bem”, disse o presidente. Cinco dias antes da declaração, Nise havia passado o dia no Ministério da Saúde.
Duas semanas depois, em 24 de julho, Bolsonaro foi fotografado por jornalistas oferecendo caixas do medicamento às emas que vivem no gramado da residência oficial.
Ministério paralelo
Nascida em Maringá, interior do Paraná, em 1959, Nise Yamaguchi se formou em Medicina na Universidade de São Paulo, a USP, em 1982 e se tornou imunologista e especialista em oncologia. Até os primeiros meses da pandemia, atuava no Hospital Israelita Albert Einstein, um dos mais prestigiados no Brasil. Mas foi afastada do corpo clínico da instituição em julho do ano passado, após fazer analogia entre o pânico provocado pela pandemia e a postura de vítimas do Holocausto.
Em meados de março de 2020, Nise se tornou conhecida do grande público por conceder entrevistas para diversos veículos de comunicação e gravar vídeos fazendo a defesa do que chama de tratamento precoce com cloroquina e hidroxicloroquina contra a covid-19. As sociedades brasileiras de Imunologia, Pneumologia e Infectologia afirmam que os remédios são inócuos contra o novo coronavírus, mesma posição da Organização Mundial de Saúde, a OMS, e das autoridades sanitárias dos Estados Unidos e de países da Europa.
O alinhamento de Nise ao bolsonarismo é recente. A médica chegou a ser chefe de gabinete do Ministério da Saúde em São Paulo de 2007 a 2010, quando a pasta estava sob o comando do então ministro José Gomes Temporão no segundo mandato de Lula. Em reportagem publicada na revista piauí em 2007, a jornalista Daniela Pinheiro investigou os bastidores da atuação do então ministro da Saúde e ouviu de Nise que ela mesma havia sido a autora da indicação dele a ministro do governo petista.
Luiz Henrique Mandetta disse à CPI suspeitar de ‘assessoramento paralelo’ a Bolsonaro sobre pandemia.
“Um dia, encontrei-me com o [Roberto] Kalil [médico que atendia o ex-presidente Lula] na porta do Incor. Foi muita coincidência. Eu falei que tinha que ser o Temporão [o novo ministro da Saúde]. Era preciso um nome da área, suprapartidário, competente. Era a nossa chance de conseguir isso. Ele me perguntou: ‘ele é seu amigo? Você confia nele? Então vai ser’”, disse.
A CPI da Covid tem colhido indícios de que a política de combate à pandemia do governo Bolsonaro foi desenhada por um grupo informal de assessores sem atuação formal dentro do Ministério da Saúde. Chamado de “gabinete paralelo”, “ministério paralelo”, grupo de “aconselhamento paralelo” ou de “assessoramento paralelo”, ele teria insuflado o negacionismo do presidente e, ao mesmo tempo, lhe dado argumentos para defendê-lo.
Além de Nise, os suspeitos de integrar o grupo são os médicos Luciano Dias Azevedo, Paolo Zanotto, Anthony Wang e Osmar Terra, além do empresário Carlos Wizard. Os assessores especiais da Presidência, Arthur Weintraub e Filipe Garcia Martins, também podem ter participado do grupo.
Em seu depoimento à CPI, Mandetta afirmou acreditar que Bolsonaro recorria a “outras fontes” e citou o termo “assessoramento paralelo” para caracterizar a busca do presidente a informações sobre a pandemia de coronavírus diferentes das fornecidas pelo Ministério da Saúde.
“Isso não é nenhuma novidade para ninguém. Havia por parte do presidente um outro olhar, uma outra decisão, um outro caminho. Todas as vezes que a gente explicava, o presidente compreendia. Ele falava: ‘ok, entendi’. Mas, passados dois ou três dias, ele voltava para aquela situação de quem não havia talvez compreendido, acreditado ou apostado naquela via. Era uma situação dúbia. Era muito constrangedor para um ministro da Saúde ficar explicando por que estávamos indo por um caminho, se o presidente estava indo por outro”, afirmou Mandetta aos senadores.
O relator da CPI, Renan Calheiros, do MDB alagoano, e o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues, da Rede do Amapá, disseram nos últimos dias estarem convencidos de que a atuação do grupo pró-cloroquina junto ao presidente realmente existiu.
Em audiência na Câmara dos Deputados, Nise Yamaguchi defendeu a imunização de rebanho sem uso da vacina.
“Acho que já temos muita coisa comprovada com relação à existência do ‘gabinete paralelo’. Já temos até o número de reuniões que eles tiveram”, disse Calheiros. Esse gabinete paralelo apostava – e insiste – em cloroquina, aglomeração e imunização de rebanho”, afirmou Randolfe, durante audiência.
Em 28 de outubro do ano passado, por sugestão do líder do governo na Câmara dos Deputados Ricardo Barros, do PP do Paraná, uma comissão da Câmara discutiu a possibilidade de se buscar a imunidade de rebanho da covid-19 no país, que seria obtida evitando-se o isolamento e permitindo que um alto percentual da população se infectasse pelo coronavírus. Entre os debatedores, estavam Nise, Zanotto e Wang – os três defenderam a estratégia de contaminação em massa da população.
“Nesse momento, não vai existir ninguém no mundo que possa dizer que você vai sair na rua e não vai pegar uma tuberculose, ou uma outra infecção viral”, disse Nise à comissão. A médica chegou a ser cogitada como nova ministra da Saúde depois das demissões de Mandetta, em abril, e de Nelson Teich, seu sucessor, em maio. Nas duas ocasiões, foi preterida.
Entrei em contato com Nise, Greice Naomi e Charles Yamaguchi através dos e-mails e telefones disponíveis em suas redes sociais. Na única ligação atendida, às 11h18 da segunda-feira, 31 de maio, uma secretária do consultório de Nise disse que informaria a médica sobre meu pedido de entrevista. Não tive retorno.
O Ministério da Saúde foi procurado na sexta-feira, 28. A assessoria de comunicação disse que enviaria as justificativas para as visitas dos irmãos Yamaguchi até a manhã de segunda-feira, 31 – o que não ocorreu. O espaço segue aberto para manifestações.