Publicado no Portal O Joio do Trigo –
À espera de gols, as tradicionalmente alegres torcidas brasileira e mexicana abrem cervejas que não merecem comemoração
O jogo começa às 11h, mas muita gente dá o pontapé inicial antes. Usando o abridor ou a quina da pedra da pia, o tssssssss do gás e o estalar metálico da tampinha se combinam para avisar que o lacre está rompido. Feijoada ou guacamole, no bar ou em casa, o líquido cai nos copos gelados. A cerveja abre a terceira rodada das oitavas de final da Copa do Mundo 2018, numa partida entre Brasil e México que marca o único confronto latino-americano do torneio até o momento. No gramado, nem que seja nos pênaltis, alguém surge vitorioso. Sobre a qualidade da bebida, o resultado é impossível de ser reproduzido no campo: brasileiros e mexicanos saem derrotados.
Quem aguarda o duelo entre os times do atacante Neymar e do técnico Juan Carlos Osorio (colombiano que já trabalhou no Brasil, no São Paulo Futebol Clube) espera gols em quantidade. Seja pela tradição ofensiva do futebol jogado nos dois países, seja pela reconhecida empolgação de ambas as torcidas, ânimo não deve faltar. Mas um pouquinho de atenção ao que se está bebendo, sim.
Leia o rótulo – que, na verdade, é quase um não-rótulo no Brasil. Se vai tomar marcas como Antarctica, Brahma, Bohemia, Itaipava, Schin, Original ou Skol, dê uma olhadinha básica. Coisa rápida. São, em média, sete ingredientes os revelados nas embalagens.
Lembrando que a cerveja tem como princípios essenciais a água, o malte, o lúpulo e a levedura. O primeiro são os grãos de cereais maltados, responsáveis pela cor da cerveja e também pelos açúcares transformados em álcool e gás carbônico – aquelas bolinhas que teimam em fugir do copo e dar uma coçadinha no nariz.
O lúpulo é a flor da planta humulus lupulus e garante aroma, sabor e conservação da cerveja. A levedura é uma turma de “bichinhos” (fungos) que come os açucares presentes no líquido e faz a fermentação. Por fim, vem a água, para dar volume à bebida.
Quase todo o rótulo lido. Ingredientes essenciais desvendados. Nada mais importa a não ser beber e gritar gol. Opa! Não é bem assim. Insista por mais uns segundinhos e vamos entender um problema: os adjuntos, ingredientes que entram na cerveja de acordo com a vontade do cervejeiro ou, na maioria das vezes, pela imposição das diretorias das empresas, que só querem, mesmo, é economizar nas costas dos cidadãos e aumentar os lucros.
Xaropes, café, mel, frutas, flores, chocolate e até bacon são usados em misturas de cervejas distribuídas em terras brasileiras e mexicanas. O que não foi descoberto é o limite que cada ingrediente pode ocupar na composição, porque a legislação é pouco objetiva a respeito nos dois países.
Mas peralá: os quatro elementos fundamentais não foram revelados? Sim. Mas as megacorporações que produzem e vendem a bebida em larga escala são firmes no lobby, que empurra a legislação para uma espécie de vácuo: grãos estranhos à formulação de uma boa cerveja são acrescentados aos montes, podendo chegar a 50%, no caso do Brasil.
O arroz e, principalmente, o milho, inclusive transgênicos, como afirma o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), têm dado as caras como os reis do pedaço. Isso porque a lei permite que as empresas identifiquem nos rótulos apenas os termos genéricos “cereais não maltados”.
Em solo brasileiro, o milho – substituto mais barato da cevada maltada, ingrediente fundamental da receita original da bebida – ocupa, em média, 45% das misturas. Um estudo do Laboratório de Ecologia Isotópica do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), da Universidade de São Paulo (USP), feito em 2012, pesquisou 77 marcas – 49 produzidas no Brasil e 28 importadas das Américas do Sul e do Norte, Europa e China. O milho foi detectado na composição de 16 cervejas nacionais em quantidades equivalentes à metade da mistura de cereais, proporção que supera o teto autorizado pela legislação brasileira.
O texto final do trabalho afirma que essas bebidas deveriam ter os nomes trocados para cerveja de milho, com o acréscimo de destacar, na rotulagem, o nome do cereal de maior presença.
Não que isso deixe as cervejarias gigantes que atuam por aqui felizes. Elas não têm limites. Transnacionais como a Ambev (Companhia de Bebidas das Américas), fabricante de Antarctica, Brahma, Bohemia, Original e Skol; Heineken Brasil, responsável, além da própria Heineken, por Amstel, Bavaria, Devassa, Eisenbahn, Glacial, Kaiser e Schin, e o Grupo Petrópolis, que tem Crystal e Itaipava como carros-chefes, são as mais atuantes na pressão ao governo federal e a parlamentares no intuito de colocar mais água no seu chope – ops, mais milho na sua cerveja.
Essas empresas, juntas, são responsáveis pela concentração esmagadora do cenário cervejeiro do Brasil, terceiro colocado do planeta em volume consumido e segundo maior em lucro com a bebida mundialmente. Ambev, Heineken Brasil e Grupo Petrópolis concentram nada menos do que 95% desse mercado que, só no ano passado, gerou receitas de R$ 70 bilhões.
“Se você é um pequeno fabricante, provavelmente não coloca milho, mas os grandes estão usando tudo o que podem”
Mesmo assim, os bilionários do setor querem que a porcentagem permitida de milho salte dos 45% para 50%, o que oficializaria o atropelamento que a regra atual já sofre, como mostrado pela pesquisa da USP.
Sete mil quilômetros distante, o México ocupa o sétimo lugar entre os produtores mundiais de cerveja, sendo o lider em exportações e o décimo-quinto importador. Na América Latina, é o terceiro país em consumo da bebida, com média de 60 litros de cerveja per capita por ano. Em 2016, a organização ambientalista Greenpeace publicou uma lista das poucas cervejarias artesanais mexicanas que se recusam a usar grãos transgênicos na fabricação: Baja Brewing Company, Bayernbrau, Calavera, Cossack e Minerva. De resto, é milho e transgenia para tudo que é (des)gosto.
“Nenhum dos nossos materiais é transgênico”, conta Jordan Gardenhire, fundador da cervejaria da Baja Brewing Company. Porém, ele marca bem as diferenças entre pequenos e grandes empresas do ramo. “Se você é um pequeno fabricante, provavelmente não usa grãos transgênicos nem coloca milho nas cervejas, mas os grandes fabricantes estão usando tudo o que podem”, assegura.
Das cervejas mexicanas famosas, a composição da Corona Extra, a marca mais popular do país, é das que mais assusta. Feita com xarope de milho geneticamente modificado, ela também leva o aditivo propilenoglicol, considerado um elemento prejudicial às células do coração, rins e outros órgãos internos, além de causador de problemas de pele.
Para piorar, em 2012, veio uma “coincidência” ruim: a multinacional belgo-brasileira Anheuser-Busch InBev (da qual a Ambev é parte fundamental) comprou os 100% do Grupo Modelo, empresa criadora da Corona, e hoje abocanha uma fatia de 60% da cena cervejeira mexicana, distribuindo, ainda, marcas internacionais como Budweiser, Miller e Stella Artois.
Perde ganhando
A Alemanha caiu fora precocemente da Copa, mas, se vivêssemos por lá, ainda que fosse para lamentar a eliminação surpreendente da atual campeã do mundo, nossa leitura do rótulo seria bem breve e poderíamos voltar os olhos aos jogos muito mais rapidamente do que a seleção germânica se despediu da competição.
Faz tempo, desde 1516, que o duque Guilherme V, da Baviera, proclamou a “Lei de Pureza da Cerveja Alemã”, conhecida em alemão como Reinheitsgebot. A regra obrigava os cervejeiros a só utilizarem água, malte e lúpulo. Eles não puderam acrescentar outros “temperos” às fórmulas até a descoberta das leveduras de fermentação, quando o texto sofreu a primeira mudança. Mais tarde, haveria o acréscimo de permissão ao uso de maltes de outros cereais, bem como um número limitado de açúcares e corantes nas cervejas de fermentação elevada.
A lei da Baviera é considerada a mais antiga em vigor no mundo todo no que diz respeito a relações de consumo. Há 502 anos os cervejeiros conseguem manter o equilíbrio entre o crescimento da produção e do consumo, e a qualidade da bebida. Pouquíssimas alterações foram permitidas. Até hoje, nenhum traço de “cereais não maltados” é aplicado na fabricação de cervejas.
Não que os alemães sejam um povoado de monges trapistas a produzir os melhores e mais puros alimentos para a humanidade. Basf e Bayer estão aí para provar que não são, como o Joio contou em reportagem recente.
No entanto, se o México ganhou dos germânicos na fase de grupos da Copa, colaborando decisivamente para despachá-los do torneio, perde de goleada quando o assunto é cerveja.
O Brasil? Bem, a gente não quer trazer mau agouro para o jogo de hoje, mas, no quesito qualidade cervejeira, é impossível não lembrar de certa peleja disputada há quatro anos, em Belo Horizonte. É gol da Alemanha.