Da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, publicado em Jornal GGN –
Diferente de muitos casos abordados nesta série de textos, Dôra, como era conhecida, não é uma desaparecida, ela é uma sobrevivente da tortura.
No dia de hoje…
em 25 de março de 1945, na cidade mineira de Antônio Dias, nascia Maria Auxiliadora Lara Barcellos. Diferente de muitos casos abordados nesta série de textos, Dôra, como era conhecida, não é uma desaparecida, ela é uma sobrevivente da tortura. Por pouco não foi morta pela política de extermínio da ditadura militar brasileira.
Primogênita entre quatro irmãos, interessou-se desde cedo por ensinar os filhos das classes mais humildes, atuando como professora com apenas 14 anos na zona rural da capital mineira. Mais tarde, ela – parte de uma geração de mulheres que marcou a entrada em massa nas universidades – ingressou na Universidade Federal de Minas Gerais para graduar-se em Medicina, impelida pela crença de que “como médica poderia ajudar mais do que como educadora”.
Seu sonho de ajudar através das clínicas foi interrompido pela necessidade de viver na clandestinidade, a partir de 1969. Neste mesmo ano, as forças de segurança entraram em sua casa, onde vivia com o marido Antonio Roberto Espinosa e com o companheiro de militância Chael Charles Schreier. Foi levada para a Vila Militar no Rio de Janeiro, onde foi torturada junto aos dois outros capturados. Nesta ocasião, morreu Chael Charles após a sessão de tortura. Roberto ficou preso por 10 anos e Dôra foi exposta nua para ser “exibida” aos guardas – ela era a única mulher presente na Vila Militar e sofreu inúmeras violências dirigidas explicitamente a sua identidade como mulher.
Os acontecimentos que a acometeram naqueles dias são conhecidos pelos relatos de outros prisioneiros e também pelo seu próprio, durante audiência na Justiça Militar, quando ainda estava presa e chegou a declarar: “Se alguém tem de comparecer em Juízo esse alguém são os representantes desta ditadura implantada no Brasil, para defender interesses de grupos estrangeiros, que espoliam nossas riquezas e exploram o trabalho do nosso povo”.
Ficou detida até 1971, quando foi banida do Brasil por ocasião do Decreto 68.050, por conta do sequestro do embaixador suíço Giovani Enrico Bucher. Espinosa, contudo, ficou no Brasil e seguiu preso. Nunca mais se encontraram.
Viver fora do país e, portanto, longe da ditadura, poderia representar uma libertação. Não foi o que aconteceu com Maria Auxiliadora. Após atravessar o golpe no Chile, onde esteve depois do banimento, e sem perspectivas de retornar ao Brasil, sofrendo com as memórias de dias terríveis, Dôra suicidou-se quando morava na Alemanha em 1976. Ela havia se matriculado novamente no curso de Medicina. Vivia um novo relacionamento. Já não estava presa, mas também não estava livre.
Dodora e sua figura, mostrada em documentários como o Brazil a Report on Torture (1973) ou Setenta (2013), assumiu um status simbólico que transmite a uma nova geração de mulheres a coragem de uma mulher militante. Sua história também transmite o histórico de práticas violadoras que afetam mulheres que ousam lutar. Como disse Espinosa – falecido recentemente e, por isso, presente! – durante audiência promovida pela Comissão Nacional da Verdade, a morte de Dôra também deve ser colocada na conta da ditadura militar brasileira.
Ainda que Maria Auxiliadora tenha ido cedo e por consequência das experiências violentas as quais foi submetida, sua trajetória ficou gravada, inclusive por suas próprias palavras em um texto deixado por ela no mesmo ano de sua morte:
“Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus cantos mais íntimos. […] Foi um tempo sem sorrisos. Um tempo de esgares, de gritos sufocados, um grito no escuro. […] Eu era criança e idealista. Hoje sou adulta e materialista, mas continuo sonhando. Dentro da minha represa. E não tem lei nesse mundo que vai impedir o boi de voar. […] Sou boi marcado, uma velha “terrorista”. Fui aprendiz de feiticeiro, não sabia usar a varinha. Deu merda. E feia”.
“Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”.
Fonte: Relatório Final da CNV, documentário Brasil: a report on torture e texto “Eu, Dodora: um relato para não esquecer os 51 anos de uma tragédia que não acabou”, disponível em https://br.noticias.yahoo.com/…/eu-dodora-um-relato-para-na….
Colaboração de Paula Franco
P.S. – Em nome das atrocidades que temos publicado diariamente, será realizada em São Paulo, no Ibirapuera, no dia 31.03.2019 (domingo), a I Caminhada do Silêncio pelas vítimas de violência do Estado. Concentração na Praça da Paz (Portão 7), às 16:00 horas.