Por Julia Dolce, compartilhado de APública –
A combinação de pandemia e frio escancara que na rua todos os dias são urgentes
“Às vezes a barraca é melhor que o albergue. Às vezes o albergue é melhor que a barraca. Bom mesmo é uma casa”, resume Cristielson Batista, há cinco anos vivendo nas ruas de São Paulo. Ele conta que deixou de frequentar a estrutura dos Centros Temporários de Acolhimento (CTAs) do município por medo de pegar tuberculose.
A doença, comum entre a população de rua, é facilmente transmitida em galpões que abrigam até 200 pessoas como uma “sinfonia da tosse”, como me disse o padre Júlio Lancellotti. Há uma semana, Cristielson teve uma febre forte e não conseguiu levantar por dois dias da sua barraca, em frente ao Theatro Municipal. Sem ajuda, ficou sem comer e beber água durante esse período. Ele também não sabe se foi coronavírus.
Na mesma maloca onde mora Cristielson também vivia Paloma Leoncio da Silva. Portadora de Transtorno de Personalidade Esquizotípica, um transtorno mental no espectro da esquizofrenia, ela me contou que, entre idas e vindas, está na rua há 11 anos. E só deixou a barraca após os amigos conseguirem uma vaga fixa para ela no CTA 8, no Brás, porque Paloma recentemente desenvolveu outra doença, uma Polineuropatia do Paciente Crítico, causada por consequência de uma anemia. “A gente tem dificuldade de comer, né”, explica. A doença causa muitas dores, o que fez Paloma tomar a decisão de sair da barraca.
Durante a conversa em frente ao Theatro Municipal, Paloma enumera experiências que mostram a dificuldade que passa vivendo no albergue. Desde ter que comprar os talheres para conseguir se alimentar até ter tido socorro hospitalar negado pela administração do albergue quando teve uma infecção alimentar. Ela ouviu que os sintomas de dor e diarréia não eram “graves o suficiente”.
Os CTAs foram a principal aposta da Prefeitura para proteger a população de rua durante a pandemia de coronavírus. O limite de pessoas desses centros foi reduzido no período, e cerca de 1.200 vagas emergenciais foram criadas em outros espaços.
A situação de Paloma poderia ser diferente se a prefeitura colocasse em prática a principal medida recomendada por quem trabalha com pessoas em situação de rua e pelo Ministério Público de São Paulo: a criação de 8 mil leitos para a população de rua em hotéis ociosos na cidade durante a pandemia.
A Lei 17.340/2020, aprovada às pressas após a determinação do estado de emergência em São Paulo, já previa a disponibilização de vagas de hospedagem em hotéis para pessoas em situação de rua. A Prefeitura abriu três editais para contratar estabelecimentos para abrigar idosos vivendo nas ruas da cidade, mas pouco mais de 200 vagas foram criadas até agora.
O coordenador nacional do Movimento Nacional da População de Rua Darci da Silva Costa, que já viveu nas ruas de São Paulo, considera “desastrosa” a atuação do governo na prevenção da Covid-19 para a população de rua. “O Estado foi muito moroso e é impossível fazer o isolamento pela própria estrutura que os serviços oferecem. No isolamento só a rua ficou na rua e já era muita gente”.
Para Darci, a pandemia mostrou que o atual modelo de políticas para a população de rua é “inviável”. “A verdade foi desnudada em relação às políticas públicas para quem está na rua: Falta habitação, falta higiene, tem insalubridade e os equipamentos são inadequados. Precisamos rever tudo isso e criar uma nova estrutura”.
O crescimento do número de pessoas que moram na rua é facilmente percebido, principalmente para quem frequenta o centro de São Paulo, ou passa pela Radial Leste, avenida que liga a zona leste da cidade à região central. O Censo da População em Situação de Rua 2019, divulgado em janeiro deste ano, estimou cerca de 25 mil pessoas vivendo nas ruas paulistanas. Em agosto, a Prefeitura divulgou que 286 sem-teto haviam sido diagnosticados com a Covid-19 entre abril e julho, e 28 pessoas já haviam morrido.
Darci acredita que a subnotificação dos casos é ainda maior entre essa população, porque existe uma ausência de dados em relação a sua saúde em geral. A condição de viver nas ruas está atrelada ao desenvolvimento de uma série de doenças e, para Darci, já é um fator de risco para a Covid-19 por si só. Para piorar, ele percebe um crescimento ainda maior da população sem habitação durante a pandemia.
“Sabemos que houve uma redução grande da classe trabalhadora empregada e nem todos conseguiram de fato acessar o auxílio emergencial. Então está havendo um empobrecimento muito grande e há famílias que estão pela primeira vez na situação de viver nas ruas”.
Nas últimas semanas, a primeira dama do estado de São Paulo, Bia Doria, criticou a população de rua em duas ocasiões diferentes. Disse que a rua era um atrativo, e que por isso as pessoas ofereciam resistência para frequentar os abrigos e chamou parte dessas pessoas de preguiçosas. Também o pré-candidato a Prefeitura de São Paulo, o deputado estadual Arthur do Val (Patriota) disse que o centro da capital “não é lugar para dar comida ao morador de rua”.
Mas na rua todos os dias são urgentes. Na semana passada, quando uma frente polar atingiu São Paulo, baixando as temperaturas para 8 graus, Paloma dormiu com frio, mesmo dentro do centro de acolhida. Isso porque logo antes, quando ainda estava na barraca em frente ao Theatro Municipal, ela tinha perdido sua roupa de cama e cobertor para uma forte chuva. “A chuva antecedeu o frio e eu perdi tudo”, conta, levantando uma sacola plástica com os pertences restantes. “A assistente social falou que eu tinha que comprar um lençol, travesseiro e cobertor lá no CTA”. Seis moradores de rua morreram de frio apenas na semana passada. A Prefeitura contabilizou duas mortes.
Em outro ponto do centro, sob o Elevado Presidente João Goulart, o Minhocão, é possível ver a aglomeração do povo da rua. É o caso de Samara Paula Oliveira Felix e o namorado Edivaldo Santos, que tem os próprios motivos para não frequentarem o acolhimento municipal. Há dois anos morando nas ruas, ela teve que deixar sua casa porque a família não aceitava sua transsexualidade e prefere às ruas aos albergues. Conta que neles, com frequência, os funcionários não a deixam ficar nos quartos femininos. A moradia temporária, de qualquer forma, não os atrai. “Devia ter um lugar para a gente ficar 24 horas”.
Parcialmente isolados debaixo do viaduto, o casal se sente protegido do frio e chuva ou de doenças como a Covid-19, chamada de “gripezinha” pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Há apenas sete meses nas ruas, Reinaldo Toledo, 64 anos, mudou sua vida por completo com a morte da mulher com quem conviveu 23 anos. A depressão veio com o luto, e até hoje ele engasga com o choro ao falar da esposa. Assim como o presidente da república, Reinaldo foi paraquedista no exército. Mas diferentemente de Bolsonaro, não acha que a pandemia é uma gripezinha. “Ele como presidente não tem que abrir a boca para falar bobagem”. Reinaldo era um dos poucos moradores da Praça da Sé que usavam máscara quando passei por lá.
Sem máscara, a proprietária de uma das 24 barracas da maloca do Theatro Municipal, Bruna Patrícia conta que voltou de uma clínica de reabilitação há sete dias e desde então, está mais cética em relação aos cuidados com a pandemia. Dependente química, ela passou 15 dias internada e longe do marido, com quem trocou alianças naquele mesmo dia. “Se você levantar e olhar ao redor vai ver que não tem nenhuma pandemia. Se tivesse, as lojas não estariam abertas assim”.
Ontem (1), funcionários da Zeladoria Urbana da Subprefeitura da Sé, tentaram tirar as barracas e pertences de Bruna e de seus vizinhos da maloca do Theatro Municipal. Uma funcionária pública conseguiu impedir a retirada, com base num decreto de fevereiro que proíbe a ação. “Eles não respeitam nada, chegam na violência”, relatou.