No Rio, covid-19 mata mais de acordo com a idade e o CEP da vítima

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Por PH de Noronha, compartilhado de Projeto Colabora

Para especialista, mortos têm cara e endereço definido: ‘são negros, pobres e que moram nas regiões mais vulneráveis’

A covid-19 é muito perigosa para os idosos, já as crianças pequenas não são uma grande preocupação. Pelo menos é isso o que se diz por aí. Porém, no município do Rio de Janeiro, 18 crianças entre 0 e 9 anos morreram vítimas da covid-19 desde o início da epidemia (em março) até o último dia 12 de novembro, de acordo com dados do Painel Rio Covid-19, da Prefeitura carioca. Uma média de uma criança pequena morta a cada 15 dias. É muito, embora na estatística geral esse número seja baixíssimo. O total de infectados com idades de 0 a 9 anos no mesmo período foi de 1.577. Assim, a taxa de letalidade dessa faixa etária no Rio é de apenas 1,1%, muito menos que os 9,9% do Município do Rio como um todo.




Porém, ao olharmos para o endereço das vítimas, um dado chama a atenção. Há apenas um menor de idade que consta como endereço indefinido nos registros da Prefeitura, todas as demais 17 crianças mortas viviam em bairros com população de baixa renda: 4 vítimas fatais em Bangu, 2 em Santa Cruz, 2 em Sepetiba e as demais com um óbito para cada um nos bairros de Realengo, Paciência, Santo Cristo, Catumbi, Anchieta, Estácio, Vicente de Carvalho, Inhoaíba e Pilares. Na Zona Sul e em bairros com poder aquisitivo maior, como Tijuca e Barra da Tijuca, nenhuma criança com menos de 10 anos de idade morreu de covid-19.

Estamos com a maior mortalidade do Brasil – se fosse um Estado nacional, o Rio seria o país com a maior mortalidade do mundo (mortalidade = proporção de mortos em relação à população). O número de mortes em domicílio do Rio este ano foi recorde em relação à série histórica. Sempre teve o óbito domiciliar (pode ser um câncer terminal, um ataque cardíaco), mas neste momento ele explodiu

Roberto Medronho
Epidemiologista da UFRJ

Uma análise dos óbitos por covid-19 no Rio combinando faixa etária e bairros das vítimas confirma o que os outros estudos já indicavam: quanto mais pobre o bairro e seus moradores, mais o coronavírus mata por lá. A novidade é que constatamos que isso acontece em todas as faixas etárias e em algumas com muito mais intensidade. Por exemplo, peguemos a faixa etária de 30 a 39 anos – uma idade da População Economicamente Ativa (PEA) altamente produtiva. Nessa faixa, para cada vítima de covid-19 na Barra da Tijuca, há 17 mortos em Campo Grande. Em números absolutos, a Barra teve apenas 2 mortos, enquanto Campo Grande contabilizou 36 vítimas.

Além da diferença de renda e qualidade de vida desses dois bairros, há uma característica importante do dia a dia da epidemia. Boa parte dos trabalhadores da Barra da Tijuca (e de toda a Zona Sul e da Tijuca), nessa faixa etária, foi colocada em home-office já em março, reduzindo drasticamente suas saídas de casa, que em muitos casos consistia em tomar alguma condução até o metrô do Jardim Oceânico e de lá deslocar-se para o local de trabalho na Zona Sul ou no Centro da cidade, fazendo o mesmo trajeto na ordem inversa de volta para a casa no fim do dia.

Já entre os moradores de Campo Grande, o que foi visto fartamente em noticiários de TV como o “Bom Dia Rio”, da TV Globo, e em jornais populares como o “Extra” e “O Dia”, e mesmo no tradicional “O Globo”, foram aglomerações diárias de segunda a sexta nos horários de pico de ida e volta do trabalho no BRT, nos trens da SuperVia, no metrô e nos ônibus convencionais. Ou seja, as imagens de ônibus abarrotados de gente sugerem fortemente que os moradores de Campo Grande foram obrigados a sair de casa e pegar transporte público todos os dias. Muito provavelmente para trabalhar.

O risco de contrair o vírus num transporte público aglomerado – duas vezes por dia, cinco dias por semana – é muito maior do que ficando em casa de segunda a sexta trabalhando em home-office. Alguém tem alguma dúvida disso?

“Na faixa das pessoas em idade de trabalho, a covid-19 é cruel!”, diz o médico epidemiologista e professor titular de Epidemiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Roberto Medronho: “São pessoas que poderiam estar muitas delas em casa, se recebessem auxílio econômico. Mas num país que tem cerca de 40 milhões de trabalhadores no mercado informal e 10 a 12 milhões de desempregados, como é que eu vou pedir para que essas pessoas fiquem em casa durante o isolamento??”

Medronho relembra que nas primeiras semanas do isolamento essas pessoas ficaram em casa, em parte porque todos tinham muito medo: “Mas depois tiveram que procurar trabalhar de alguma forma e aí veio a flexibilização, que só piorou, porque tornou o transporte público um grande nodal de transmissão do vírus. Não se deu aos transportes condições para que as pessoas pudessem viajar em segurança. O que sempre vimos foram veículos atoladíssimos de pessoas. Isso pode ter contribuído muito para a disseminação da doença. Por isso, nesses bairros mais vulneráveis as pessoas tiveram que sair para trabalhar e isso aumentou o contágio entre elas e, consequentemente, os óbitos”.

Se estendermos a faixa etária da população adulta que trabalha, incluindo quem tem de 20 a 29 anos e de 40 a 59 anos, a diferença entre os bairros de mais baixa renda e os mais abastados é quase sempre muito grande. Alguns exemplos:

  • Na faixa de 20 a 29 anos, para cada vítima fatal em Botafogo, há 13 mortes em Bangu; para cada óbito na Lagoa Rodrigo de Freitas, há 10 em Santa Cruz.
  • Dos infectados entre 40 a 49 anos, para cada pessoa que morre em Ipanema, quase 10 vão a óbito em Senador Camará; no Flamengo, ninguém morreu nessa faixa etária, mas na Pavuna morreram 14.
  • E na faixa de 50 a 59 anos, para cada morto em Copacabana, há 3 no Realengo; para cada morto no Leblon, há pelo menos 5 no Irajá.

Em relação às taxas de óbitos de idosos, há outras comparações chocantes. Por exemplo, em Campo Grande, Bangu, Realengo ou Pavuna (todos bairros com alta incidência de coronavírus), 1 em cada 3 infectados com idades entre 60 a 69 anos não escapa vivo da covid-19 (taxas de letalidade entre 32% e 34%). Em contraste, na Barra da Tijuca, morre apenas 1 em cada 16 infectados; em Copacabana é 1 em cada 14.

Várias comparações similares poderiam ser feitas, todas levando à mesma lógica: quem mora nos bairros de população de mais baixa renda têm mais chances de morrer de covid-19, em todas as faixas etárias. Inclusive entre o chamado grupo de risco dos idosos, de 60 anos para cima.

No Brasil e no mundo, a maior quantidade de mortos pela Covid-19 está nas faixas etárias acima dos 60 anos. E no Rio não é diferente. Os óbitos em infectados com 60 anos ou mais representam 77% do total de mortes por covid-19 no município. Já na faixa entre 20 e 59 anos, a proporção de mortos é de apenas 22,7%. Os gráficos de covid-19 no Rio por faixa etária (tabelas em anexo) não diferem muito das médias internacionais: quase 60% dos casos de Covid-19 acontecem na faixa etária de 30 a 59 anos; 81% das mortes se concentram entre os pacientes de 50 a 90 anos; e a letalidade é bem maior entre idosos de 60 a 110 anos, com taxas em torno de 29%. Porém, quando se compara os números segmentados pelos bairros do Rio, vemos uma distribuição desigual.

Tomamos como amostra os 30 bairros com maior incidência de covid-19 no município do Rio (tabela em anexo). Esses 30 bairros representam 52% dos casos de toda a cidade, numa lista que começa com Barra da Tijuca e Campo Grande (campeões de incidência de covid-19) e termina com Gávea (29º no ranking) e Engenho de Dentro (30º).

Para separar as regiões mais ricas das mais pobres, dividimos esses 30 bairros em três grupos de acordo com seu Índice de Desenvolvimento Social (IDS), indicador do Instituto Pereira Passos da Prefeitura carioca que mede a qualidade de vida de cada bairro:

  • Grupo 1 – Os bairros mais abastados, com IDS entre 0,706 e 0,780. Compreendem Leblon, Barra da Tijuca, Ipanema, Gávea, Flamengo, Laranjeiras, Botafogo, Copacabana e Tijuca.
  • Grupo 2 – Os bairros de população com qualidade de vida e renda intermediária, com IDS entre 0,609 e 0,687. Inclui Méier, Vila Isabel, Recreio dos Bandeirantes, Centro, Freguesia (de Jacarepaguá), Irajá, Taquara, Bonsucesso, Engenho de Dentro, Olaria e Ramos.
  • Grupo 3 – Os bairros mais vulneráveis, com piores condições de vida e onde vivem populações com renda média mais baixa, com IDS entre 0,527 e 0,584. Engloba Santa Cruz, Paciência, Senador Camará, Jacarepaguá, Pavuna, Bangu, Inhaúma, Campo Grande, Realengo e Penha.

A segmentação desses bairros de acordo com suas condições econômicas e de qualidade de vida reforça o peso maior da Covid-19 sobre as comunidades de mais baixa renda.

No Grupo 3, o mais vulnerável, morre-se de duas a sete vezes mais de covid-19 do que no Grupo 1, dependendo da faixa etária. Por exemplo, entre 0 a 29 anos de idade a taxa de letalidade no Grupo 1 é de 0,2% (ou seja, morrem 2 pessoas em cada 1.000). No Grupo 2, a letalidade dobra, 0,4% (4 mortos por 1.000 infectados). E no Grupo 3, salta para 1,5% (15 mortos por 1 mil infectados).

Roberto Medronho conta que esse é o padrão que ele e outros epidemiologistas vêm observando nas últimas pandemias que acompanharam, de H1N1 e Zika: “As classes sociais mais vulneráveis são sempre as mais atingidas pela doença. Isso é muito preocupante. Teoricamente, Zika, Dengue, Chikungunya e as viroses respiratórias teriam uma tendência mais ‘democrática’. Por exemplo, todo mundo que morasse num local que tem o Aedes Aegypt (transmissor da Zika, da Dengue e da Chikungunya) seria picado pelo mosquito. O grande problema é que as desigualdades em nosso país são muito elevadas e, por isso, tem mais mosquitos nas favelas do que nos bairros das classes média e alta”.

Ele chama a atenção para outra questão da geografia social urbana do Brasil: “As doenças respiratórias se propagam melhor em lugares que têm aglomerados urbanos desordenados, com várias pessoas morando em um único cômodo, bastante comum entre as camadas mais vulneráveis da sociedade. E é o que estamos vendo agora. A covid-19, especialmente em relação aos óbitos, ela tem cara: ela atinge o povo negro e pobre, eles são as maiores vítimas.”

Para Medronho, as populações mais vulneráveis poderiam, sim, ter sido melhor protegidas da epidemia. Mas faltou vontade política: “Em qualquer epidemia, o grande diferencial é você ter um sistema de saúde resiliente e integrado, que vá desde a atenção básica até um hospital mais completo com UTI. A chegada da pandemia de covid-19 ao Brasil era impossível de ser evitada, nenhum país conseguiria, não havia tecnologia para isso. Mas havia tecnologia para evitar as mortes – e essa é que é a grande questão. No Rio, além de termos tido uma grande redução dos médicos de família, temos a demissão de profissionais, pagamentos atrasados, problemas com as OSs (organizações sociais que assumem a gestão de unidades de saúde), vemos que nosso sistema já começou falho, porque ali é a porta de entrada do sistema de saúde.”

Medronho aponta que a crise na atenção básica do município – com o esvaziamento das Clínicas das Famílias durante a gestão do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) – impactou fortemente o desempenho do Rio nesta pandemia: “Estamos com a maior mortalidade do Brasil – se fosse um Estado nacional, o Rio seria o país com a maior mortalidade do mundo (mortalidade = proporção de mortos em relação à população). O número de mortes em domicílio do Rio este ano foi recorde em relação à série histórica. Sempre teve o óbito domiciliar (pode ser um câncer terminal, um ataque cardíaco), mas neste momento ele explodiu”, acrescenta.

Medronho compara o Rio com a vizinha Niterói, que seguiu um caminho diferente e está conseguindo outros resultados: “A Prefeitura de Niterói, que ouviu mais a ciência e formou um comitê científico sério, teve uma letalidade de 3,2%, enquanto o Rio teve mais do que 10%, três vezes mais. Na mortalidade, Niterói teve 111 casos por 100 mil habitantes; no Rio de Janeiro, foram 200 casos por 100 mil habitantes, quase o dobro.”

Mas o que Niterói fez de diferente? “Lá, o médico de família funciona. Ele detecta o caso, acompanha precocemente o paciente das comunidades mais vulneráveis e, caso esse paciente comece a dar sinais de complicações da doença, imediatamente encaminha para uma unidade referenciada de cuidados secundários ou terciários. Além disso, realiza os testes na própria residência do paciente. No Rio, além de não termos mais o médico de família, não há um sistema de testagem. Temos uma rede de saúde grande e temos técnicos muito competentes. O que faltou é vontade política de investir na testagem e no isolamento das pessoas. Se o Rio tivesse feito seu dever de casa de forma correta, essa onda poderia ter sido encerrada em meados de junho.”

Roberto Medronho critica duramente o caminho adotado pelo prefeito Marcelo Crivella contra a epidemia, mas também as ações do governo estadual: “Está aumentando o número de casos e a responsabilidade é das autoridades de saúde pública do estado e do município, que não investiram numa política adequada para o controle da pandemia. Em 9 de março eu dei entrevista ao Globo dizendo que a prioridade era reduzir a letalidade da doença. Para isso haveria a necessidade de ampliar leitos e eu defendi o uso de hospitais de campanha das Forças Armadas, como fora feito na epidemia de dengue em 2008. Seria um custo muito baixo e ampliaria a oferta de leitos. E as Forças Armadas tinham condições de montar hospitais de campanha em vários estados. Não teríamos essa gastança de dinheiro com os hospitais de campanha, que serviram de muito pouco. O governo estadual empenhou mais de R$ 800 milhões, uns R$ 250 milhões chegaram a ser gastos, mas, dos sete hospitais prometidos, só tivemos o do Maracanã, mesmo assim atrasado e incompleto.”

Para Medronho, o que evitou que a Covid-19 matasse muito mais gente no Brasil foi o Sistema Único de Saúde (SUS): “Felizmente temos o SUS. A mortalidade no Brasil é menor do que na Itália, na França e na Grã-Bretanha, até que nos Estados Unidos. Devemos isso ao SUS. Se estivéssemos num sistema de saúde igual ao norte-americano, seria uma mortandade, muita gente morrendo sem sequer entrar no hospital. Nosso grande problema é o vírus da politicagem, com esse governo negacionista e essa falta de integração entre os níveis estadual, municipal e federal. Isso fez com que tivéssemos muitos óbitos que poderiam ter sido evitados. Mesmo assim, o SUS conseguiu salvar muitas vidas.”

Na foto: Jovem trabalha em um cemitério do Rio, pintando cruzes, limpando túmulos e correndo risco de contaminação. Foto Fabio Teixeira/NurPhoto – Julho de 2020

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