Noel no Divã

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Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero” do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Desta vez o autor põe Papai Noel no Divã.

Por Cícero César




Por mim eu não viria, mas ela me mandou até aqui, me disse que ia me fazer bem à cabeça. De nada adiantou argumentar com ela que esta é a pior época do ano para se começar terapia. Não me leve a mal, meu senhor, eu até tenho simpatia por quem ostenta uma barba comprida que nem a minha sem ser lenhador, não é nada pessoal. Apenas o momento é pouco oportuno.  A gente está meio aéreo por bons motivos.

Já passei da hora de me aposentar, é certo. Mas sou daqueles que não conseguem ficar parados. Minha vida é meio como a de microempresário, tem muita gente que depende de mim, sabe como é que é, na cadeia produtiva.

Ano que vem eu reavalio, prometo, se passo ou não na 25 de Março e no Saara.

Tô  ficando velho, mas como se disse certa vez, não sou velhaco.  Ano que vem, férias em Aruba a patroa e eu, sem truques nem trenós, sem renas nem Renans.

Ela comprou um par de shorts com uma estampa caribenha daquelas especialmente para a celebração do nosso segundo honeymoon, não sei se entra mais, engordei. Mas sabe como é que é, o que vale é a intenção. 

Naquele afã eu arranquei a etiqueta, agora não dá mais para trocar. É constrangedor esse negócio de medir a circunferência abdominal.

Nesta época do ano, recebo mais cartas do que celebridades de reality shows, modéstia à parte. É batata no bacalhau.

Não gosto de sair espalhando por aí que eu sou eu. Odeio privilégios. Não rodei o mundo todo umas não sei quantas mil vezes para aproveitar da minha condição.

Esse vermelho todo não é à toa, tem simbolismo. Na hora da vacina, entrei na fila, pô, como qualquer um. Astrazeneca. 

Não poderia ser diferente, é o preço que se paga pelo reconhecimento. Imagina a manchete: “Papai Noel fura fila”, com letras garrafais e uma foto minha, absolutamente reconhecível apesar do Ray-ban, da máscara e do boné. Tem muito fura-olho nesse mundo que ia adorar espalhar uma Fake News dessas.

Arruína-se uma reputação por prazer. Daí para o cancelamento é um pulo. Cancelado não tem bônus.

Com o Google Maps ficou mais fácil, admito. Mas também perdeu um pouco a graça. A gente ia no faro, cada um era seu próprio GPS, a noite não parecia ter fim. Agora a gente é avisado até quando, como vocês dizem, o bicho está pegando. Já teve míssil tirando tinta do trenó, não acertou porque Deus não quis. É uma disputa pelo espaço aéreo que só vendo.

Não aceito terceirização nem uberização, não senhor. Ou é à antiga ou não é nada. Sou tradicional mesmo. E minha história é muito mais plausível do que a de meu maior rival, a do coelho da Páscoa. Onde já se viu coelho botar ovo? É muita licença poética para o meu gosto.

A conversa está boa, mas eu estou aqui preocupadíssimo em cumprir a minha meta. Depois de Aruba, a gente retoma a terapia com certeza.

Isso é, se sobrar alguma coisa, o dólar tá lá em cima, não sei onde estava com a cabeça quando aceitei as condições dela para uma segunda lua de mel. Aquela rena nunca nos preocupou, não senhor. Que cada um seja o que é. Chegou a vez dela.

A gente se vê.

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