Com muito sol e bons ventos, região abre portas para o ‘combustível do futuro’ com 17 projetos de empresas internacionais
Por Diálogo Chino, compartilhado de Projeto Colabora
Tanque em planta de energia em Brandenburg, na Alemanha, onde hidrogênio verde é produzido por energia eólica: projetos para combustível no Nordeste do Brasil (Foto: Fabian Sommer / dpa / AFP – 28/08/2021)
(Victor Uchoa – Salvador*) Um choque na água. Pode até parecer simplório, mas é por este processo — a eletrólise — que surge o hidrogênio verde (H2V), elemento gasoso que já recebeu o apelido de “combustível do futuro” e é visto como fundamental na busca pela neutralidade de emissões dos gases de efeito estufa (GEE) até 2050, meta do Acordo de Paris.
Hoje, o Brasil não produz tal fonte de energia, mas, se os projetos planejados ganharem forma, o país pode virar um protagonista global deste mercado, com destaque para a região Nordeste.
Os passos iniciais foram dados, especialmente no Ceará, que em fevereiro lançou o projeto do HUB do Hidrogênio Verde. Trata-se de uma parceria que envolve governo estadual e Federação das Indústrias do Ceará — na atração de investidores —, Universidade Federal do Ceará (UFC) — no desenvolvimento tecnológico — e o Complexo Industrial e Portuário do Pecém, que vai abrigar o HUB, no município de São Gonçalo do Amarante.
Desde então, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Trabalho do Ceará assinou 12 memorandos de entendimento com empresas de diferentes países, interessadas em erguer plantas de eletrólise com a produção de H2V para exportação. O Diálogo Chino mapeou esses projetos no infográfico a seguir.
A eletrólise, como descrito no infográfico, é o processo de submeter a água (H2O) a uma corrente elétrica, ou seja, um choque. Tal descarga separa as moléculas de hidrogênio (H2) e oxigênio (O2), gerando o gás. Se a eletricidade utilizada para converter a água em hidrogênio vem de fonte limpa, como vento e sol, não há emissão de GEE no processo. É daí que surge o nome hidrogênio verde.
Entre as empresas que assinaram memorandos, está a australiana Enegix, que promete investir US$ 5,4 bilhões para que sua planta, batizada de Base One, seja a maior usina de H2V do mundo. O projeto prevê a produção anual de 600 mil toneladas do gás.
Para se ter uma ideia, considerando que um quilo de H2 dá autonomia de cem quilômetros a um carro, a produção da Base One seria capaz de abastecer seis milhões de veículos por ano, se cada um rodar dez mil quilômetros em média.
“Em 15 ou 20 anos, o Nordeste pode ter um papel crucial no mercado internacional do hidrogênio verde”, afirmou ao Diálogo Chino o secretário do Desenvolvimento Econômico e Trabalho do Ceará, Maia Junior.
“Este será um dos vetores da nova economia, e o Ceará criou condições de infraestrutura e tributárias para se colocar bem (nesse mercado), além de termos o vento e o sol ideais”.
As afirmações de Maia Junior se baseiam no fato de que o Ceará possui a única Zona de Processamento de Exportação (ZPE) ativa no Brasil, garantindo benefícios tributários e cambiais. Além disso, o Nordeste brasileiro tem uma incidência de vento constante, com velocidade estável e que não muda muito de direção, contando ainda com elevada irradiação solar média, o que significa bom potencial para a produção de energias eólica e solar.
Outro fator que ajuda o HUB cearense é que o Porto de Roterdã, maior terminal marítimo da Europa, é dono de 30% do Porto do Pecém. Como os holandeses também estão desenvolvendo um projeto para produção, importação e distribuição do H2V, o vínculo societário facilitaria a exportação para a Europa do hidrogênio produzido no Ceará.
Segundo o secretário Maia Júnior, o Ceará ainda está atraindo investidores e, para que os projetos saiam do papel, inovação é essencial. É aí que entra a UFC, que tem criado parcerias com as companhias que desejam integrar o HUB, visando ao desenvolvimento tecnológico e à formação de profissionais.
Em setembro, a universidade assinou um acordo com a chinesa MingYang Smart Energy, fabricante de equipamentos para a geração de energias renováveis, como placas fotovoltaicas e turbinas eólicas, detendo inclusive tecnologia para usinas offshore (dentro do mar).
O acordo prevê o intercâmbio entre professores e estudantes da UFC e técnicos da MingYang, criando um programa de pesquisa conjunto, além de um projeto-piloto offshore no Pecém.
Grupos da UFC vão visitar plantas da MingYang e trocar informações para a criação de equipamentos para produção eólica offshore que se adaptem bem à nossa costa. Quando essas usinas estiverem operando dentro do mar, serão mais uma fonte para abastecer o nosso HUB”, afirma Augusto Albuquerque, responsável pelas relações internacionais da UFC. “Estamos fechando parcerias para trocar conhecimento. Nosso sonho é ter um grande centro de desenvolvimento de hidrogênio verde na universidade”, completa. Hoje, o sonho ainda está apenas no papel.
No vizinho Rio Grande do Norte, líder nacional em produção de energia eólica, a eletricidade gerada pelos ventos também pode abastecer plantas de H2V. No estado, três empresas assinaram memorandos paraimplantar usinas de H2V que vão utilizar a energia de futuras eólicas offshore.
Ainda no Nordeste, duas companhias prevêem a instalação de plantas de H2V no Porto de Suape, em Pernambuco. Saindo da região, a australiana Fortescue também quer ter uma planta no Porto de Açu, no Rio de Janeiro.
“O Nordeste vai virar um exportador de energia, porque é um grande produtor de energias renováveis, então poderá suprir a demanda interna e ainda vender. O ganho econômico será enorme. O hidrogênio verde será um pilar no processo global de descabornização”, diz Mônica Saraiva Panik, diretora de relações institucionais da Associação Brasileira de Hidrogênio.
“Não é só no Brasil. O hidrogênio verde pode mudar a geopolítica mundial, porque os países não vão depender de reservas de gás ou petróleo. Vai se destacar quem tiver energias renováveis e isso coloca no jogo países da América Latina, do Caribe e da África”, completa Panik.
Interesse chinês
Enquanto companhias das mais diversas bandeiras já anunciam futuras usinas de H2V no Brasil, empresas de capital chinês atuantes no país ainda estão na fase da prospecção de projetos.
Em 2020, a SPIC Brasil, da chinesa State Power Investment Corporation, assinou memorando que envolve o Centro de Pesquisa de Energia Elétrica e o State Power Institute. Segundo a companhia, serão investidos US$ 3,5 milhões em pesquisas de hidrogênio verde e smart energy, conceito que defende o uso racional de energia. A primeira etapa, já iniciada, “visa ao desenvolvimento de tecnologia para ônibus e outros meios de transporte público movidos a hidrogênio verde”, declarou a SPIC Brasil ao Diálogo Chino.
Em setembro, a CEO da empresa no Brasil, Adriana Waltrick, já havia dito ao jornal Valor Econômico que o H2V é um dos focos da companhia. “Somos líderes na China em hidrogênio (verde), é uma tecnologia que produz zero carbono e pode ser muito útil para o Brasil”.
Por sua vez, a CTG Brasil, filial brasileira da China Three Gorges Corporation, lançou uma chamada pública batizada de Missão Estratégica Hidrogênio Verde.
“O objetivo é mapear o mercado brasileiro, entender e avaliar o potencial dos modelos de negócio, sua cadeia de valor e tecnologias associadas, o que deve gerar oportunidades de investimento”, declarou, por email, o diretor de estratégia e desempenho empresarial da CTG Brasil, Silvio Scucuglia.
Podem participar da chamada empresas públicas e privadas. Com R$ 18 milhões para destinar aos projetos, dos quais R$ 3 milhões são do Senai, a CTG Brasil busca propostas voltadas a produção, armazenamento e distribuição do H2V, considerando também projetos que visem ao uso do combustível em áreas como agricultura, mobilidade e indústria.
A China é o maior produtor mundial de H2, mas do tipo cinza, que é poluente. Este ano, entretanto, anunciou um megaprojeto de H2V na Mongólia Interior, com investimento de US$ 3 bilhões.
Para Carlos Peixoto, diretor-executivo da consultoria H2Helium, é só uma questão de tempo para surgirem iniciativas mais robustas no Brasil: “Não temos visto, ainda, as companhias chinesas se movimentarem muito por aqui sobre o hidrogênio verde, mas certamente estão se preparando e de repente podem anunciar algo, como um eletrolisador de outro mundo. Não tenho dúvida de que vão entrar com força no mercado brasileiro do hidrogênio”.
Corrida global por fontes limpas
Hoje, a matriz energética brasileira conta com 48% de fontes renováveis, enquanto no mundo essa taxa é de 14%. Na matriz elétrica, a diferença é ainda maior. No Brasil, 83% da eletricidade tem origem renovável. No mundo, 25%.
Estas vantagens, porém, não impediram que o Brasil tenha chegado à COP26 com atrasos na batalha climática. Um estudo publicado pelo Observatório do Clima poucos dias antes da conferência mostra que em 2020 as emissões brasileiras cresceram 9,5%, enquanto no mundo elas tiveram queda de quase 7%, devido à pandemia de covid-19.
O levantamento aponta que o país lançou no ar 2,16 bilhões de toneladas de gás carbônico equivalente no ano passado, o maior nível desde 2006, o que, segundo o Observatório, tem ligação direta com o desmatamento da Amazônia.
Este dado soma-se a um estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) publicado pela revista Nature, apontando que a Floresta Amazônica, atualmente, emite mais carbono do que absorve.
“Historicamente, os processos de transição energética duraram duas ou mais gerações. Foi assim para passar do carvão ao petróleo e depois ao gás. O corte do carbono será em uma geração, porque é urgente”, observa Emílio Matsumura, diretor-executivo do Instituto E+ Transição Energética.
Isto ajuda a explicar por que o hidrogênio verde ganhou os holofotes. Por ser um grande armazenador de energia, o H2 pode ser usado em processos industriais e atividades muito dependentes dos combustíveis fósseis (logo, grandes emissoras de GEE).
Gargalos do hidrogênio verde no Brasil
Na visão de Carlos Peixoto, o Brasil largou atrasado na corrida do H2V, pois sequer conta com regulamentação para o vetor, enquanto já há mais de 30 países com uma estratégia bem definida, segundo informe do Hydrogen Council publicado este ano. Em 2019, eram apenas três países (França, Coreia do Sul e Japão), o que mostra, segundo ele, como o mundo está caminhando rápido para o “hidrogênio renovável”.
“Temos que correr atrás, formar jovens, fazer patentes. Temos condições de ser protagonistas, mas temos que começar logo”, diz o consultor, cuja empresa assinou memorando com o HUB do Ceará para atuar no desenvolvimento de projetos.
Mônica Panik avalia que a regulamentação dará mais segurança aos investidores, criando as condições para aumentar a escala de produção. Mas ela acredita que, mesmo sem legislação específica, os projetos vão andar.
“A cadeia do hidrogênio verde é toda baseada em energias renováveis, um setor regulado e consolidado no Brasil. Os eletrolisadores também são utilizados há décadas, então tecnicamente não há segredo. O que se espera é evolução técnica, para diminuir custos. Ainda não há regulamentação, mas as empresas já estão fazendo estudos e processos de licenciamento”, diz.
Frente ao otimismo de todos os envolvidos nos debates sobre o “combustível do futuro”, Panik observa que isso se dá porque os riscos, sob seu olhar, são poucos: “O hidrogênio verde não é só uma onda. É claro que exige esforço, investimento, desenvolvimento técnico, mas esse é um caminho sem volta. O risco é não ir nesta direção. Quem não for, vai ficar sozinho”.