Em sua declaração no Egito, o presidente Lula colocou ao Brasil e ao planeta a questão central sobre o genocídio em Gaza: para o projeto sionista, é imprescindível extirpar o povo palestino
Por Pedro Lima Vasconcellos, na Revista Fórum, compartilhado de 082 Notícias
Um voto vergonhoso entre outros, para começar
Numa deplorável tarde de domingo, 17 de abril de 2016, uma assembleia de bandidos comandada por um bandido – a expressão não é minha, mas de um jornalista a serviço de um periódico português – votava a abertura de um processo de impeachment de uma presidenta eleita legitimamente, sem que pairasse sobre ela qualquer sobra de cometimento de crime de responsabilidade. O resto é história ruinosa, e o Brasil avançava célere na direção do caos institucional, das arbitrariedades, do aviltamento das condições de vida da população, com a destituição de muitos de seus direitos, arduamente conquistados após anos de lutas e resistência.
Mas do show de horrores que foi aquela reunião conspiratória contra o Brasil de sua gente quero destacar um lance que talvez naquele momento tenha sido tomado por menor, tamanhas foram as sandices, imbecilidades e atentados contra a sociedade, particularmente suas parcelas mais carentes e marginalizadas. Houve um parlamentar que, ao fundamentar seu voto sem fundamento, apelou a um motivo que pouco chamou a atenção: a presidenta do Brasil deveria ser destituída, numa violação ao direito mais elementar, “pela paz em Jerusalém”! Dias depois, instado a justificar a estupidez, saiu-se com pérolas que nem vale mencionar aqui.
Mas cabe recuperar a questão, de contornos renovadamente densos num contexto como o atual. Afinal de contas, um genocídio ocorre diante de nossos olhos e a mídia “hegemônica” – em conluio com não poucos nomes ditos “de esquerda” – escamoteia a discussão fundamental, sobre a brutalidade do que está ocorrendo na Palestina e as causas dela. Em lugar disso se desdobra em manobras diversionistas destinadas a fustigar Lula diante da arrojada manifestação sua, ao final de seu recente périplo pela África, associando a crueldade das forças comandadas por Netanyahu contra a gente de Gaza àquela manifestada por Hitler “quando mandou matar os judeus”. Entre tais personagens “de esquerda”, alguns que se denominam especificamente “sionistas de esquerda”.
Chego finalmente ao ponto: sionismo, termo que ganhou manchetes, suscitou debates, levantou polêmicas. Mas a que o conceito se refere, com ou sem manobras verbais, com ou sem adjetivos?
Recuperando lances da história
Permito-me inicialmente um pouquinho de história. Corria o ano de 1940. Na terra ainda reconhecida com o nome de Palestina a enxurrada de assentamentos de contingentes judeus vindos da Europa que ocorria já há duas ou três décadas alcançava proporções insustentáveis, comprometendo as condições de vida da população autóctone. Ela via suas terras serem tomadas, vilarejos destruídos, contingentes seus deslocados compulsoriamente e outras tantas vítimas de atentados terroristas cometidos por grupos armados (por que não os chamar de milícias?). Uma grande revolta havia sacudido o território nos três anos anteriores, em reação à invasão em escala ímpar que destroçava modos tradicionais de inventar o cotidiano e preparava o que, acelerado pelo horrendo Holocausto, se precipitaria como o Estado de Israel, imposto ali em 1948. Mas o que em 1940 um notável arqueólogo, pesquisador já experimentado das coisas daquela região em tempos remotos (dois, três, até quatro mil anos atrás), considerado o patrono da camada “arqueologia bíblica”, conseguia vislumbrar nas movimentações frenéticas dos agentes paramilitares que aterrorizavam a região, com a cumplicidade – entre tácita e declarada – do imperialismo inglês então dominante na região, o que William Fox Albright conseguia ver naquelas incursões devastadoras era o anseio por “reavivar Sião”. Não lhe importava muito que tal reavivamento estivesse ocorrendo às custas de vidas e culturas também ancestrais; com uma boa dose de cinismo argumentava que algo similar havia ocorrido às populações autóctones do território hoje estadunidense, sem que o “humanitarismo radical” da nação tivesse sido minimamente trincado. Ele cita outros exemplos, em que o extermínio de povos inteiros acabou sendo o preço inevitável a ser pago para que saltos rumo a mais desenvolvimento sociocultural pudessem ser dados. E, a partir do que lia no livro bíblico de Josué e do que encontrava como confirmação dele nas escavações que vinha realizando, sustentava ter sido necessário o desaparecimento de um povo com marcas de indiscutível inferioridade ante um outro em que potencialidades superiores eram manifestas; em casos assim qualquer forma de miscigenação resultaria desastrosa. Simples assim.
Com efeito, o livro bíblico em questão narra como um contingente vindo de fora da terra de Canaã (ou seja, a Palestina), organizado como se fora um exército, atacou e destruiu impiedosamente cidades e aldeias da terra que acabavam de invadir, distribuindo-a imediatamente entre suas famílias e clãs, tomadas por destinatárias dela, por direito e promessa divinas. Era Israel suplantando as populações autóctones e impondo-se como força dominante, que logo tomaria as configurações de um estado organizado, sob a liderança do lendário rei Davi. A este respeito Albright celebrava que os israelitas conquistadores tivessem sido dotados de uma dose adequada de selvageria, associada ao que chamava “energia primitiva” e a uma determinação inarredável de existirem enquanto tais. Foi o que, de um lado, garantiu a dizimação dos povos da região palestina e, de outro, uma fusão que, ao final, teria rebaixado os elevados padrões morais e religiosos dos recém-chegados. Uma ode ao extermínio.
E o que aquelas forças paramilitares, terroristas mesmo, realizavam na Palestina dos anos 1930-40 não era outra coisa, segundo o arqueólogo, que a reedição do que, três mil anos e duzentos antes, seus supostos antepassados haviam perpetrado à população local, dizimando-a, subjugando-a e apossando-se de suas terras. Mas posicionamentos como estes, que se poderia corretamente apontar como no mínimo tendentes a alguma forma de fundamentalismo cristão (sim, Albright era metodista), seriam facilmente subscritos por um outro Davi, o Ben Gurion, figura emblemática do sionismo dito “de esquerda”. Aquele que, antes de ser primeiro-ministro do Estado a ser imposto ao território em 1948, comandava uma das organizações armadas clandestinas que, junto a outras, durante anos disseminou horrores e destruições sem tamanho em meio à população palestina. Pois muito bem: ele, que era tomado como ao mesmo tempo “socialista” e “laico”, quando buscava a fundamentação última para o arrogado direito dos contingentes judeus que migravam (principalmente) da Europa à terra da Palestina, dizia encontrá-la naquilo que denominava “O Livro”.
Alguém tem dúvidas de qual livro se trata? Então vamos lá: Ben Gurion dizia estar convencido que nenhum dos comentadores que por dois mil anos ou mais se debruçaram sobre as páginas do livro de Josué (sim, este mesmo, explicitamente!) conseguiu desvendá-las mais precisa e eficazmente que as ações do exército israelense. E asseverava: nos assentamentos da gente chegada à Palestina e instalada em terras até há pouco habitadas por contingentes ora desalojados e despossuídos, neles germinavam sementes que estavam a concretizar palavras de profetas registradas naquele livro. Finalmente garantia, com a aura que se esperaria encontrar num líder religioso entusiasmado pela mensagem que proclamava: somente ao povo que se encontra nos cenários a que remetem os venerandos relatos; apenas a ele, na medida em que pense e sonhe na língua em que o “Livro” foi escrito, serão entregues seus segredos mais recônditos. Isso Ben Gurion escrevia em 1951, três anos, portanto, após a imposição do Estado de Israel e a assunção dele ao cargo de primeiro-ministro.
Reavivar Sião
A expressão que vimos ser a de Albright cabe como uma luva no ideário esposado por Ben Gurion, justamente por isso denominado “sionista”. É preciso, portanto, não perder de vista que a efetivação deste ideário, materializada na implantação do Estado de Israel, se deu às custas de uma história palestina de horrores, e a continuação dela tem tido lances de que as cenas pavorosas que hoje nos passam diante dos olhos são expressões eloquentes. É virtualmente impossível separar uma dinâmica (o empreendimento político) da outra (a tragédia social e humana), seja porque a história foi e vem sendo feita em formas em que ambas se veem articuladas, seja porque a segunda era, previsivelmente, condição e desdobramento da primeira.
Sim, a coisa a que me refiro é esta: a catástrofe imposta à população palestina não foi um acidente de percurso, até porque ela tem alargada duração: os recursos ao livro de Josué acima mencionados mostram que a convicção de que à população palestina caberá pagar o preço mais amargo da efetivação do projeto sionista era a tônica e continua dando o tom. E quanto a isso pouco ou nada divergem sionistas dos mais variados matizes, inclusive quem aí se diz situar “à esquerda”. Reitero: Ben Gurion também se postava “à esquerda”; só seria preciso perguntar-se em relação a que ou a quem…
Mas cumpre agora dar o passo decisivo para os propósitos deste artigo: por que foi em nome exatamente de um tal “sionismo” que se deu a imposição do Estado de Israel sobre o território palestino e vem sendo imposta à população dele, já quatro ou cinco gerações, uma continuada Nakba (termo árabe que significa “catástrofe”) feita de deportações, cercos, bombardeios, destruições, assentamentos feitos a modo de sempre mais provocar, num percurso que já beira os cem anos?
Sião é Jerusalém. Mais precisamente: Sião é o nome de uma colina à qual é associada, segundo os textos bíblicos, a construção do templo judeu pelo rei Salomão, destruído uma vez seiscentos anos antes de nossa era pelo poderio militar babilônico, reconstruído algumas décadas depois por licença persa, ampliado em tempos próximos aos de Jesus e arrasado por forças do imperialismo romano enviadas contra a cidade no ano 70, já da nossa era. A este ano é associada a diáspora imposta ao povo judeu, responsável pela presença de segmentos seus em vários cantos do mundo, com as conhecidas expressões de antijudaísmo (que não é o mesmo que antissemitismo, é preciso salientar; esta confusão é muito conveniente na cena política atual, mas pode ser assunto para outra oportunidade). Desde então o sonho por um retorno à terra que este povo tomava por sua só fez crescer. A configuração do cristianismo no interior das fileiras abraâmicas (em que se configuram também o judaísmo e o islã) de alguma forma veio reforçar este anseio: as cruzadas moveram massas e mais massas humanas fundamentalmente em vistas ao controle daquela cidade que, a partir de fins do primeiro milênio da nossa era passava a ser chamada Bayt al-Maqdis (ou, mais simplesmente, Al-Quds, ou seja, a [cidade]sagrada) pelo mundo de fala árabe e de religião muçulmana e abrigava, justamente naquele canto associado ao monte Sião, o que hoje chamamos “Esplanada das mesquitas”, em que despontam o Domo da Rocha e a mesquita de Al-Aqsa.
Foi por não saber o que fazer com este cenário, altamente complexo e eventualmente explosivo, relativo à cidade santa para as religiões judaica, cristã e muçulmana, que as determinações da Organização das Nações Unidas estabelecendo que o território palestino devesse ser retalhado para que nele se abrigassem dois estados previram para ela um estatuto diferenciado, sob controle internacional. Mas é preciso verificar a sequência dos eventos: desde os inícios as movimentações sionistas visavam a cidade que entendiam ter-lhes sido usurpada, seja por fatores de ordem cristã, seja principalmente pelo que tomavam (e tomam) por intrusões de matriz muçulmana. Que o digam:
– a criação de uma universidade “hebraica” (!) na cidade, já em 1925;
– os atentados nela perpetrados (entre os quais o mais afamado ficou sendo o do hotel King David, liderado pelo terrorista e futuro primeiro-ministro de Israel Menahem Begin);
– os avanços das milícias sionistas para a ocupação da cidade quando do estabelecimento do Estado de Israel, em clara violação do que previa a ONU quanto ao status diferenciado dela;
– o erguimento, também nela, de um memorial em honra de Theodor Herzl em 1949 para abrigar seus restos mortais, ele que em fins do século XIX escreveu o verdadeiro manifesto sionista que foi O estado judeu e liderou os esforços para a realização do primeiro congresso sionista, ele que havia falecido em 1904;
– os resultados alcançados pela guerra conhecida como “dos seis dias”, em 1967, que culminaram com o estabelecimento do controle sionista sobre a parte oriental da cidade, aquela reivindicada pelo lado palestino para ser a capital de seu Estado cuja instalação nunca foi permitida;
– a declaração, nos tempos do governo do já mencionado Begin (1980) da cidade como capital indivisível (!) do Estado de Israel e os incentivos para que os países transfiram para lá suas respectivas embaixadas;
– os movimentos cada vez mais intensos no sentido de restringir o acesso da população palestina, árabe e muçulmana em geral aos sítios e edifícios que toma por sagrados.
Isso tudo se fez e se continua a fazer em nome de “reavivar Sião”: em cada um destes movimentos (a que poderiam ser acrescidos muitos e muitos outros) são nacos de território, de referências culturais, de tradições ancestrais, de possibilidades de futuro, de esperanças para o imediato amanhã que são tragados à gente palestina. E que não se venha com poréns ou diversionismos: existe sionismo sustentável sem a ideia de uma Jerusalém como capital do Estado que esta ideologia veio a ter como sua expressão política encarnada? Há, concreta e sinceramente, sionismo que conceba um Estado outro que ocupe fatias de um território que a ideologia religiosa em que ele se funda toma como seu? Ou a protelação que vem de décadas relativa a um estado palestino é parte indispensável e decisiva do processo pelo qual, ao fim e ao cabo, as fronteiras de Israel acabariam por serem aquelas lidas em algumas das páginas do tal “Livro” a que recorria o “sionista”, “laico e de esquerda” Ben Gurion? Com efeito, como assevera o historiador Amnon Krakotzkin, estes sionistas laicos, seculares, eventualmente de esquerda, tendem a não acreditar em D’us, mas estão convencidos de que D’us lhes prometeu as terras todas da Palestina…
Implicações
Há, portanto, um fator religioso, criptorreligioso se se quiser, subjacente a qualquer expressão de sionismo: como poderia haver sionismo sem Sião? Há, da mesma forma, um aceite, tácito ou não, da brutalidade que foi o processo de instalação do estado sionista de Israel e da continuada brutalidade que se vem mostrando crescentemente indispensável para que ele se consolide e tenha continuidade histórica. Freud sabia disso e anteviu o terror que viria; Einstein o pôde constatar nos últimos anos que lhe coube viver. Não, o conflito não começou aos 07 de outubro do ano passado; é só ver o que estava ocorrendo dias antes desta data fatídica. E que tal recuperar a “Declaração Balfour”, do longínquo 1917, assegurando o apoio imperialista inglês à causa sionista a ser imposta ao território e à população da Palestina?
Justamente por isso, confundindo (ou não) alhos com bugalhos, sem saber (ou sabendo) para onde rumava o vento, o voto rasteiro e oportunista daquele parlamentar da bancada dita “evangélica” (que depois viraria ministro do “breve” e “apequenado”) acabava por alcançar razão de ser, a despeito de nada ter a ver com aquela que apenas supostamente era a questão na tal assembleia macabra: o fato de se defender a existência do estado palestino e de denunciar as truculências sionistas indicava, a seus olhos, que o governo brasileiro “tinha virado as costas para Israel”. E isso é inaceitável; por isso Dilma teria de ser derrubada. E assim se fez. Aliás, é bom lembrar que a então presidenta, em mais um dos gestos a manifestar sua dignidade e seu compromisso com os direitos humanos, recusara como embaixador de Israel no Brasil alguém que anteriormente atuara na efetivação de assentos ilegais em terras palestinas…
E na mesma esteira hoje condenam Lula por ter dito o que há muito tempo vem sendo dito e pensado, menos em setores (poderosos!) dominados pelo projeto sionista, quer trata de realizar, por caminhos que podem diferenciar-se aqui e ali, a depender de quem o executa, a “despalestinização” da Palestina. Projeto que, em seu núcleo, supremacista e colonial, e em suas expressões, por variadas que sejam, nada tem de secular, e muito menos daqueles valores que possam ser associados ao que de melhor a esquerda tem a oferecer ao mundo.