Compartilhado da Revista Cult –
Ademir Assunção veio ao mundo (e que mundo!) em 1961. Quis ser astronauta, arqueólogo e palhaço de circo, mas acabou poeta e jornalista. Como o jornalismo entrou em falência múltipla nos últimos anos (muita gente dando palpite sobre tudo e pouca gente reportando o que realmente está acontecendo), acabou somente poeta, vivendo na corda bamba, quase como um trapezista. Publicou mais de uma dúzia de livros e pretende publicar mais uma ou duas dúzias – ao menos para deixar um legado aos terráqueos futuros de que nem tudo era terra plana e pensamento raso nestes tristes tempos deste país absurdo.
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Torquato Neto, Marcos Prado e Maria Esther Maciel . A curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.
O poema de Torquato Neto foi escrito aos 17 anos de idade (1962). Permaneceu inédito por 50 anos, até ser publicado no único livro que deixou organizado: O fato e a coisa, lançado somente em 2012, numa pequena e quase desconhecida edição, 40 anos após sua morte. Só por isso já seria um documento valiosíssimo. Mas espanta também a ironia, quase afronta, de um garoto ainda imberbe a um dos já consagrados poetas à época em que o poema foi escrito: Vinícius de Moraes.
Radical como Torquato, o curitibano Marcos Prado também passou por este planeta com a brevidade de um cometa, deixando uma poesia carregada de eletricidade, merecedora de mais atenção – como quase toda poesia mais radical produzida nesta terra frouxa, digo, brocha, digo, micha.
A mineira Maria Esther Maciel continua por aqui, ativíssima, na poesia, na prosa e no ensino universitário.
Com esses três poetas escolhidos, lanço meus dados no tabuleiro desta ilha, lembrando que a poesia é mestra em manhas, magias, sutilezas e revoltas. Nunca é tarde para afirmar um talvez clichê: poesia rima com rebeldia. Até a próxima.
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Bilhetinho sem maiores consequências
Torquato Neto
Uma retificação, meu bom Vinícius:
Você falou em “bares repletos de homens vazios”
e no entanto se esqueceu
de que há bares
lares
teatros, oficinas
aviões, chiqueiros
e sentinas,
cheinhos (ao contrário)
de homens cheios.
Homens cheios
(e você bem sabe)
entulhados da primeira à ultima geração
da imoralidade desta vida
das cotidianas encruzilhadas e decepções
da patente inconsequência disso tudo.
Você se esqueceu
Vinícius, meu bom,
dos bares que estão repletos de homens cheios
da maldade das coisas e dos fatos,
dos bares que estão cheios de homens cheios
da maldade insaciável
dos que fazem as coisas
e organizam os fatos.
E você
que os conhece tão de perto
Vinícius “Felicidade” de Moraes
não tinha o direito de esquecer
essa parcela imensa de homens tristes,
condenados candidatos naturais
a títulos de tão alta racionalidade
a deboches de tão falsa humanidade.
Com uma admiração “deste tamanho”.
***
Tristes homens azuis
Marcos Prado
não é blues, tristes, não é mesmo
a tristeza não faz um homem azul
o branco é branco, o negro é negro
ninguém é triste, não há blues
só existem, tristes, os tristes homens azuis
eles se vestem de branco e de negro
e os outros vêem azul
porque não são brancos nem negros
os tristes homens azuis
ninguém nasce azul
não se põe no mundo
alguém azul
mas quando a noite baixa
se levantam
os tristes homens azuis
***
De como a princesa Somaprabhá
respondeu ao rei, seu pai,
mediante os três pretendentes
Maria Esther Maciel
– Entre um herói, um mágico
e um artista
prefiro o que faça o imprevisível,
o delicado no amor
perverso na sutileza
que saiba a mágica, a arte
e a conquista
sem que seja três
ou um de cada vez.