O canto da sereia do empreendedorismo se dissolve na exploração dos profissionais assentada no conceito de negócios como transporte por aplicativo e entregas de comércio eletrônico e de comida
Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora
Após percorrer distância equivalente a algumas voltas na Terra, um brasileiro perdeu a opção de renda – emprego tinha o seu avô –, porque seu carro ficou velho demais. Apesar de conservá-lo com esmero, o programa de computador vetou pelo ano de fabricação, sem choro nem vela. A máquina decide, e fim.
O brasileiro, então, correu para outra opção em voga nessa quadra lamentável da história: entregas para o comércio eletrônico. Inscreveu-se numa das maiores plataformas, apontando que morava em comunidade popular da Zona Sul carioca – logo, pretendia circular pelos bairros das redondezas.
Outra máquina deu a resposta: ele faria entregas na região de Queimados, na Baixada Fluminense. Precisaria dirigir 60 quilômetros, ou mais de uma hora no trânsito horrível da metrópole viciada em rodovias, só para começar a trabalhar. Além disso, sem conhecer a região, encararia o risco de entrar em comunidades privatizadas pelo crime. Tudo em troca de R$ 160 brutos por dia.
Você não leu errado: CENTO E SESSENTA REAIS a cada jornada de trabalho, que ainda bancaria o combustível e o desgaste do carro. Uma nota de cem, uma de cinquenta e uma dez como símbolos da barbaridade que se esconde na ilusão do empreendedorismo vendida pelas gigantes da tecnologia. A propaganda desenha o eldorado da independência dos patrões, o paraíso de manejar a própria rotina, o idílio de gerir receitas, gastos e horários. Tudo mentira.
Outro brasileiro (como milhares) insiste. Contabiliza ter ganho, em um mês do ano passado como motorista, R$ 12 mil. Em seguida, detalha a rotina: 12 horas diárias ao volante, no vaivém exasperante das ruas, de domingo a domingo. Em dois fins de semana por mês, folga – ao menos na concepção big tech de descanso: pai divorciado, pega os filhos na sexta-feira e, nos dias seguintes, roda de 5h às 10h, quando acorda as crianças. Segunda-feira, recomeça a odisseia.
Ainda encara aventuras tenebrosas em seu cotidiano. Parou de trabalhar à noite desde que levou uma passageira lá dentro de uma favela em São Gonçalo. Traficantes armados de fuzil desconfiaram que ele era policial e o obrigaram a abrir as redes sociais no celular para conferir. A depender do que aparecesse, o brasileiro seria fuzilado ali mesmo. Felizmente, ficou “apenas” no susto extremo.
Histórias como a desses brasileiros se multiplicam no precário planeta das big techs. A rotina que lembra os mais radicais malabaristas de circo – aqueles sem rede de proteção – busca o inexistente pote de ouro no fim do arco-íris. Sem alternativa, os trabalhadores se jogam, lutando à exaustação para tourear a conta simplesmente impossível de fechar.
Basta pegar os preços praticados nas plataformas para constatar a impossibilidade do modelo. Uma corrida de táxi – baseada em cálculos elaborados, com custos amenizados por subsídios e sob gestão e vigilância do Estado – sai, em média, pelo dobro do oferecido num carro de passeio por um aplicativo, para o mesmo trajeto. Não pode estar certo.
A chave está na precariedade. No modelo das big techs, inexiste seguro para motoristas e passageiros; a avaliação do profissional é igualmente capenga – basicamente, basta baixar o aplicativo no celular e acelerar pelas ruas. Tudo desregulamentado, descontrolado, liberado como manda o capitalismo mais irresponsável.
Ah, colunista: você não lembra o serviço porco que os táxis prestavam nos tempos do monopólio? E por que devemos pagar mais, diante da oferta de economizar? E a independência dos cidadãos? E o livre arbítrio?
Tudo muito bonito, em teoria; mas no fim, dá inapelavelmente errado. Para se viabilizar, as plataformas digitais precisam explorar os trabalhadores além de qualquer limite razoável. É o alicerce do modelo – qualquer gasto fora disso, o negócio desmorona.
E ainda tem a emerdalização, conceito tão bem explicado por Caio Almendra, aqui no #Colabora. Para garantir o lucro, os mamutes digitais precisam piorar seus serviços nas duas pontas – para clientes e trabalhadores. Quando começaram no Brasil, os carros por aplicativo ofereciam balinhas e água mineral; hoje, tentam cobrar pelo ar condicionado nos dias de calor apocalíptico da crise climática.
Jamais por acaso, virou preocupação governamental regular o setor – os presidentes Lula (Brasil) e Joe Biden (EUA) discutiram o assunto, no último encontro que tiveram. Os mandatários não terão o engajamento das próprias empresas, que resistem a revelar informações ou aceitar modificações na relação com trabalhadores e consumidores.
Muitos países baniram empresas do setor. A Uber, por exemplo, foi excluída de Alemanha, Bulgária, Dinamarca, Hungria, Itália e Taiwan, além de estados americanos e australianos. Em muitos outros cantos da Terra, as big techs enfrentam problemas com a lei e os governantes. Praticam todo tipo de vilania corporativa, ganham e perdem.
Mas expulsá-las não é solução, porque elas se tornaram parte essencial do mercado de trabalho contemporâneo. Estima-se que mais de 250 mil carros do município do Rio estejam no serviço de transporte por aplicativo (fora os que chegam dos outros 20 municípios da região metropolitana). São milhões de pessoas das famílias dos motoristas, sustentadas pela ocupação. Caminho sem volta.
Só não dá para acreditar no canto da sereia. Nunca foi empreendedorismo, sempre foi exploração, como provam as histórias – reais – de muitos brasileiros.