Por Guilherme Freitas para O Globo, reproduzido no Portal Geledés –
A variedade do Labaf é uma amostra do bom momento da literatura nigeriana, que contrasta com o índice de analfabetismo de quase 40% e os obstáculos para a liberdade de expressão no país. Embora ela seja mais conhecida no mundo por seus dois maiores expoentes, Wole Soyinka e Chinua Achebe (morto em 2013), há uma nova geração de escritores, radicados na Nigéria ou no exterior, que começa a ser mais conhecida. Alguns já são familiares para o leitor brasileiro, como Teju Cole e Chimamanda Ngozi Adichie, que têm livros traduzidos em português e estiveram na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Outros, como Helon Habila e Sefi Atta, permanecem inéditos no Brasil, mas colecionam prêmios e traduções.
Um dos convidados do Labaf, o dramaturgo e ficcionista Rotimi Babatunde participou de uma mesa sobre a literatura nigeriana contemporânea. Ganhador em 2012 do Caine Prize, principal prêmio literário do continente, ele foi um dos 39 escritores africanos com menos de 39 anos selecionados para a antologia “Africa39”, publicada em 2014 por iniciativa do Hay Festival britânico. No evento em Lagos, Babatunde enumerou alguns dos diversos temas da nova geração de escritores, como o retorno dos imigrantes nigerianos radicados nos Estados Unidos e na Europa, a expansão da classe média no país e a ameaça do Boko Haram.
— As gerações anteriores tinham temas comuns como o colonialismo e a ditadura. Também compartilhavam ideologias, como pan-africanismo e marxismo, que defendiam ou combatiam. As novas gerações não têm tantos elementos unificadores, o que leva a uma proliferação de estilos e temas — diz Babatunde, que vive em Ibadan, cidade universitária de 4 milhões de habitantes e um dos centros literários do país.
Um dos temas de Babatunde, inédito no Brasil, é a história de choques entre a Nigéria e o Ocidente. O conto “A República de Bombay”, pelo qual ganhou o Caine Prize, é protagonizado por um sargento nigeriano que, depois de combater na Segunda Guerra Mundial pelo Império Britânico, volta a seu país e declara a própria casa um Estado independente. Em “O tigre dos manguezais”, incluído em “Africa39”, um chefe tribal desperta um misto de fascínio e ódio em mercadores europeus no fim do século XIX.
— Meu objetivo quando escrevo não é desfazer equívocos sobre a África. Isso seria pouco. Quero criar meditações ficcionais sobre a experiência humana. E me esforço para tornar todo personagem, não importa sua raça, o mais interessante e complexo possível. Nesse processo, os equívocos são expostos como os preconceitos intolerantes e patéticos que são — diz Babatunde.
Nascido nos EUA de pais nigerianos, criado em Lagos e hoje radicado em Nova York, Teju Cole escreveu sobre a visão ocidental da África no ensaio “O Complexo Industrial do Salvador Branco”. O texto de 2012 criticava a campanha viral de uma ONG americana pela prisão do líder guerrilheiro Joseph Kony, responsável por massacres em Uganda. Cole a acusava de simplificar o problema e apelar para o mito de que a África precisa ser “salva” pelo Ocidente, ignorando o papel da política externa americana no conflito e o esforço dos próprios ugandenses para lidar com Kony.
O ensaio foi lembrado em 2014 depois que a campanha pela libertação das centenas de meninas sequestradas pelo Boko Haram, criada na Nigéria com a hashtag #BringBackOurGirls, ganhou adesão de políticos e celebridades de todo o mundo. Em maio, Cole escreveu no Twitter (@tejucole): “Lembrem-se: #TragamNossasGarotasDeVolta, um momento vital para a democracia nigeriana, não é o mesmo que #TragamNossasGarotasDeVolta, uma onda de sentimentalismo global”.
— Se por um lado há ideias sintomáticas como “Esses africanos não têm salvação” ou “Esses nigerianos são todos uns criminosos”, a questão mais fundamental é que uma pessoa branca na Europa ou nos EUA no fundo não considera o nigeriano como um igual. Há brancos que nunca diriam algo racista, mas ainda assim não veem o negro como um igual — diz Cole, por e-mail. — Quero que meus leitores levem a sério a questão da igualdade. Talvez um escritor não possa fazer muito para mudar a sociedade, mas pode fazer um pouco, e esse pouco já faz diferença.
Colaborador de veículos como “New Yorker” e “Granta”, Cole, de 39 anos, reflete sobre o trânsito entre culturas no romance “Cidade aberta”, publicado no Brasil pela Companhia das Letras. O livro acompanha as reflexões de um médico de origem nigeriana em suas longas caminhadas por Nova York. A novela “Todo dia é do ladrão”, que a mesma editora lançará em 2016, acompanha o retorno de um imigrante nigeriano a Lagos. Atualmente, Cole trabalha em um livro de não ficção sobre a megalópole, baseado em entrevistas, pesquisa histórica e memórias pessoais.
— Como as grandes cidades brasileiras, Lagos é um lugar que abriga todo tipo imaginável de energia humana. É um lugar filosófico, sedutor, improvisado, um lugar de amor, medo, dinheiro, perigo e frustração. O que a torna uma cidade única é que, mesmo tendo uma população de quase 21 milhões de pessoas, o mundo não sabe quase nada sobre ela — diz Cole.
A cidade é também o foco do projeto mais recente da escritora Chimamanda Ngozi Adichie, de 37 anos, outra selecionada na antologia “Africa39”. Criado em 2014, o blog “As pequenas redenções de Lagos” (http://americanahblog.com) é uma espécie de continuação do romance “Americanah”, que ganhou o prêmio da Associação Nacional de Críticos dos EUA e foi publicado no Brasil ano passado pela Companhia das Letras.
A protagonista do livro, Ifemelu, é uma estudante nigeriana nos EUA que cria um blog sobre as tensões raciais no país. No novo blog, Chimamanda imagina o que Ifemelu escreveria sobre a Nigéria ao retornar depois de mais de uma década no exterior. Há comentários sobre o dia a dia na cidade, o combate ao Ebola em meados de 2014 e, claro, o Boko Haram.
— A Nigéria sempre teve tensões religiosas. No Sul, de maioria cristã, muita gente acha que todo mundo no Norte apoia o Boko Haram. Mas precisamos lembrar sempre que a maioria das vítimas de atentados é muçulmana — disse Chimamanda, que vive entre Baltimore (EUA) e Lagos, em entrevista por telefone em setembro, na época do lançamento de “Americanah” no Brasil.
Nascida em Enugu, no Sudeste do país, habitado pelo povo ibo, de maioria cristã, Chimamanda retratou as divisões étnicas e religiosas da Nigéria em “Meio sol amarelo” (Companhia das Letras, 2006). O romance é ambientado nos anos 1960, durante a guerra civil que causou a morte de centenas de milhares de nigerianos, a maioria deles ibo. Ela critica o presidente Goodluck Jonathan por não agir para evitar um novo conflito de grandes proporções.
— A Nigéria é um gigante na África, podemos lidar com isso. Mas o Exército nigeriano não está preparado para enfrentar o Boko Haram. E o governo não é honesto sobre isso, não demonstra capacidade de liderança. Vai ser uma luta muito longa.