Novatos

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O Bem Blogado passa, a partir deste belo texto, a publicar contos do escritor e jornalista Claudio Lovato, autor de obras como Na Marca do  Penalti e O Batedor de Faltas.

Já colaborador assíduo do Bem BlogadoLovato fala em seus escritos sobre futebol colocando a alma em campo.  Nossos dilemas, conflitos e prazeres sobre o tema o escritor coloca na ponta dos dedos. Sintam isso ao ler Novatos. 




 

NOVATOS

Por Claudio Lovato, escritor e jornalista

O velho treinador tinha jogadores demais que entravam muito bem durante a partida, mas que, quando colocados em campo desde o início, sumiam em pouco tempo, murchavam, tornavam-se menos do que medíocres. Eram prata-da-casa, promessas de craque, o clube apostava neles, a torcida também, mas ainda não estavam prontos.

O legendário Ary Santamaria, treinador de muitas batalhas, sabia que só o tempo faria com que amadurecessem. Mas estava preocupado com as expectativas criadas em torno deles. O clube queria resultados imediatos.

Não havia dinheiro para comprar jogadores experientes – e bons, diferentemente da quase totalidade dos veteranos do plantel – e, dessa forma, compensar a inexperiência no meio-campo e no ataque do time. O time tinha aspirações de ficar entre os seis primeiros colocados no campeonato. Santamaria não estava confiante nisso.

À noite, em casa, pensava nos garotos que jogavam bem quando entrevam no decorrer da partida. O problema acontecia com três de seus cinco atacantes e com dois armadores. Para muitos era um mistério do futebol. Não para o experiente Santamaria. Ele sabia do que se tratava. Já enfrentara a dificuldade muitas vezes antes.

Tinha a ver, acima de tudo, com motivação. Os garotos precisavam sentir a urgência de encontrarem uma solução para a partida. Quando entravam faltando 25 ou 20 minutos, colocavam fogo no jogo, infernizavam a vida dos defensores adversários, assumiam integralmente a missão de salvar o time.

Também tinha tudo a ver com o fato de entrarem em campo descansados, claro. Pegavam os zagueiros e os volantes já com a língua de fora e barbarizavam para cima deles. Habilidosos, os meninos tinham gás de sobra e um rico repertório de jogadas, e surpreendiam a todos.

Quando começavam jogando, porém, caíam logo nas garras do sistema defensivo adversário, tornavam-se presas fáceis de zagueiros e volantes rodados. Dosavam mal a energia, corriam demais no início. Com poucos minutos de jogo já haviam informado aos técnicos e jogadores oponentes todo o seu acervo de truques com a bola e sem ela. Acabavam sendo anulados com 10 ou 15 minutos de jogo. Eles iam melhorar, claro.

Com o tempo aprenderiam a guardar forças para distribuí-la ao longo de toda a partida, simplificariam algumas jogadas, guardariam aquele drible especial para o momento mais oportuno, aprenderiam a ser venenosos e a dar o bote na hora mais apropriada, na situação mais aguda. Aprenderiam a se fazer de mortos. O jogo jamais perderia a graça para eles só por estarem muito marcados. Mas o clube queria resultados a curto prazo.

Ary Santamaria precisaria conversar muito com os seus garotos. Teria de dizer a eles que uma partida de futebol tem 90 minutos, mais os acréscimos. E que um atleta tem de participar enquanto a bola estiver rolando. Muitos dizem que a história comprova que os craques tiram poucos coelhos da cartola durante uma partida; que apresentam, na verdade, uma ou outra grande jogada que decide tudo.

Mas mesmo esses grandes craques, enquanto essas jogadas fabulosas não acontecem, precisam ajudar o time de algum jeito, seja preocupando os defensores adversários, puxando a marcação para que um companheiro se aproveite disso, ou cavando faltas – qualquer coisa, menos ficar andando com as mãos na cintura a partir dos quinze minutos do primeiro tempo, com ar de quem foi descoberto, flagrado, e se rendeu.

Em uma de suas cada vez mais frequentes noites de reflexão solitária, Santamaria se viu segurando a foto da mulher, Júlia, falecida havia cinco anos. A foto estava em um porta-retrato bonito e discreto. Lembrou-se de como ele próprio fora um jovem precipitado e impaciente. Pensou nas vezes em que Júlia teve de suportar sua intolerância em relação a qualquer coisa que não estivesse correndo exatamente como ele queria.

Santamaria se lembrou de um episódio ocorrido em 1973, um ano especialmente difícil na vida deles. Ainda não era um técnico consagrado, longe disso. Estava insatisfeito com o rendimento do time naquele início de temporada, achava que os resultados já deveriam ser muito melhores, ignorou o fato de que nenhum outro time no país tivesse desempenho melhor, esqueceu-se de que o elenco havia passado por uma reformulação quase completa.

Certo dia, no final de um treino, ficou sabendo, pelo médico da equipe, que um conselheiro havia comentado na festa de aniversário do clube que o técnico estava escalando o centroavante errado. Santamaria se enfureceu e foi tirar satisfações com o conselheiro, sujeito pouco conhecido e sem nenhuma influência no clube. A conversa, no estacionamento do estádio, terminou com insultos de ambos os lados. Santamaria pediu as contas e despareceu.

Seus companheiros de comissão técnica, quase todos os jogadores e muitos dirigentes tentaram fazê-lo mudar de ideia, mas não conseguiram. Santamaria ficou o restante do ano sem trabalhar, até conseguir um novo contrato.

Ary Santamaria mudou e, com isso, fez de Júlia uma mulher mais feliz. A companheira serena e compreensiva nos bons e nos maus momentos, a Júlia da foto no porta-retrato bonito, que, naquela noite de solidão, ele colocou de novo sobre a mesa de centro da sala de estar para voltar a pensar em seus garotos que só jogavam quando entravam com a partida em andamento e que tinham entre 17 e 20 anos.

Com o transcorrer do campeonato, dois dos garotos demonstraram evolução mais rápida do eu os outros: Mauro, um dos armadores, e Carlinhos, um dos atacantes, já não se entregavam tão cedo e tão completamente à marcação.

Na metade do campeonato, o armador pela esquerda, Robério, a maior promessa do grupo, mas ainda afeito demais às firulas e com uma tendência a se jogar bem antes de o adversário encostar nele, teve uma grave lesão no joelho e não jogou mais naquele ano. Uma péssima notícia, um problema com o qual teriam de conviver sem esperar solução.

Os outros dois garotos continuavam a exemplificar na prática um velho ditado que Santamaria aprendera com seu sogro: “Arrancada de touro, chegada de vaga”.
O time chegou ao final do campeonato como 15º colocado entre os 24 que disputavam a Primeira Divisão. O clube teve de transferir suas expectativas para o na seguinte. Não tinha outro jeito.
Santamaria sabia que no outro ano as coisas seriam melhores. Os meninos estariam diferentes, teriam se transformado em jogadores de jogos inteiros, ou quase.

O velho treinador Ary Santamaria pensou então que no ano seguinte ele também teria de estar melhor. Porque tanto os seus garotos quanto ele próprio, assim como todas as outras pessoas, seriam sempre novatos nesta vida.

Ao ter esse pensamento, Santamaria sorriu, olhando para o reflexo de seu roto enrugado no vidro da cristaleira da sala de estar em que passava a maior parte de suas noites de homem solitário. Apesar da melancolia que não parava de crescer dentro dele, Santamaria ainda sentia-se abraçado pela confortante sensação de que sempre se poderá ficar melhor enquanto houver tempo e se tiver um espírito inquieto.

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