Nunca se morreu tanto no Brasil

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Projeções indicam números ainda piores em 2021. Brasil deve registrar cerca de 2,65 milhões de nascimentos e 1,7 milhões de óbitos

Por José Eustáquio Diniz Alves, compartilhado de Projeto Colabora

Vista de um cemitério no Rio de Janeiro onde crianças trabalham limpando os túmulos: Nunca morreu tanta gente no Brasil. Foto Fabio Teixeira/Anadolu Agency/AFP. Outubro/2021




Nunca houve tantas mortes no Brasil como em 2020. Pela primeira vez, nos 520 anos da história brasileira, mais de 1,5 milhão de vidas expiraram no espaço de 12 meses. O número de óbitos já vinha aumentando no país em razão do maior volume de habitantes e do crescimento da proporção de idosos no conjunto da população, mas deu um salto no ano passado em função da pandemia de covid-19. O IBGE divulgou as estatísticas do Registro Civil, no dia 18 de novembro, mostrando que a mortalidade chegou a 1.524.949 óbitos em 2020, montante 15% superior aos 1.332.466 falecimentos de 2019 e 52% superior aos 1.005.882 óbitos de 2003, conforme mostrado no gráfico abaixo. É a maior variação anual da mortalidade em toda a série de registros demográficos do país.

As estatísticas do Registro Civil do IBGE também apontam para uma redução do número de nascimentos, conforme mostra o gráfico abaixo. Em 2003 nasceram 3,4 milhões de bebês no Brasil e o número de nascimentos ficou acima de 3 milhões até 2015. Em 2016 houve uma queda abrupta em decorrência da epidemia da Zika, quando o número de nascimentos caiu de 3,1 milhões para 2,9 milhões (queda de 5%). Mas houve recuperação nos dois anos seguintes e uma nova queda em 2018 para a casa de 2,9 milhões de bebês. De 2019 para 2020 a queda foi de 2,9 milhões para 2,73 milhões (redução de 5% dos nascimentos). Portanto, o efeito da pandemia da covid-19 sobre a redução dos nascimentos foi semelhante ao efeito da epidemia da Zika. Um outro fator que contribuiu para a queda da taxa de natalidade foi a redução do número de casamentos durante a pandemia que diminuiu 26% entre 2019 e 2020.

O gráfico abaixo mostra as estimativas para os nascimentos, mortes e crescimento vegetativo das projeções populacionais do IBGE (revisão de 2018) para os anos de 2019 e 2020 e os dados do Registro Civil. Nota-se que os dados da projeção do IBGE e os dados vindos dos cartórios e consolidados pelo IBGE para o ano de 2019 são bastante parecidos. Mas para 2020, as diferenças são evidentes. Houve 235 mil nascimentos a menos do que o previsto nas projeções, 136 mil mortes a mais e 371 mil pessoas a menos do que o previsto no crescimento vegetativo das projeções do IBGE.

O impactado da pandemia da covid-19 foi grande em 2020, mas será ainda maior em 2021, pois enquanto o número de mortes provocadas pelo SARS-CoV-2 foi de 195 mil vidas perdidas em todo o ano de 2020, atualmente já são 418 mil vítimas fatais entre 01 de janeiro e 20 de novembro de 2021, segundo dados do Ministério da Saúde. Projetando os dados do Portal da Transparência do Registro Civil, mantido pela ARPEN (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), o Brasil deve registrar cerca de 2,65 milhões de nascimentos e 1,7 milhões de óbitos, com um aumento vegetativo de menos de 1 milhão de pessoas em 2021. Portanto, não há dúvidas de que a pandemia do novo coronavírus provocou o aumento da quantidade de caixões e a diminuição dos berços, com o consequente menor crescimento vegetativo.

Todavia, a expectativa é que, em 2022, o número de óbitos diminua e o número de nascimentos aumente, já que os casais que adiaram suas decisões reprodutivas durante a pandemia devem ter os filhos desejados nos próximos anos. Assim, o Brasil deve voltar aos trilhos da transição demográfica, que é uma tendência estrutural que deve se impor sobre as variações conjunturais de curto prazo.

A evolução dos nascimentos e óbitos na transição demográfica brasileira

A Transição Demográfica é um dos fenômenos de mudança de comportamento de massa mais importantes da história da humanidade. Durante cerca de 200 mil anos, desde o surgimento do Homo Sapiens, as taxas de mortalidade eram muito altas, especialmente a mortalidade infantil. Mas os avanços na produção de bens de subsistência, o aperfeiçoamento dos meios de transporte, as conquistas da medicina e a melhoria das condições de higiene e saneamento básico possibilitaram a redução das taxas de mortalidade e o aumento da longevidade a partir do século XIX. Em 1900, a esperança de vida ao nascer que estava em 32 anos no mundo e 29 anos no Brasil, passou para 73 e 76 anos, respectivamente, em 2019. Foi um avanço excepcional.

Após o início da queda das taxas de mortalidade, as pessoas e as famílias perceberam que não precisavam mais manter altas taxas de fecundidade para se contrapor à baixa sobrevivência dos filhos. Adicionalmente, o avanço da urbanização, da educação, da inserção da mulher no mercado de trabalho, a elevação do padrão de consumo e a maior disponibilidade de métodos contraceptivos eficazes fez com que as famílias adotassem o padrão de poucos filhos, em função do aumento do custo e diminuição do benefício das crianças.

Assim, a nova dinâmica demográfica reduz a base e alarga o topo da pirâmide populacional, gerando uma mudança na estrutura etária. Isto permite o surgimento de um bônus demográfico que é essencial para a decolagem do desenvolvimento econômico e social. Todo país que tem elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) passou pela transição demográfica e só mantém alto padrão de vida em decorrência das baixas taxas de mortalidade e natalidade.

Mas o 1º bônus demográfico é um fenômeno temporário tendo data para começar e para acabar. O período mais favorável da mudança da estrutura etária começa quanto a proporção da população ocupada (produtores efetivos) aumenta e termina quando esta proporção diminui. Existe a possibilidade de um 2º e um 3º bônus, mas aproveitar o 1º bônus demográfico é pré-requisito para a elevação do IDH.

As figuras abaixo mostram três momentos da transição da estrutura etária. Em 1950, o Brasil tinha uma estrutura de idade muito jovem com idade mediana da população de apenas 19 anos. No ano 2000, o Brasil já tinha uma distribuição de idade mais adulta, com idade mediana de 25 anos. No ano 2050, o Brasil terá uma estrutura etária envelhecida com idade mediana de 45 anos.

Este padrão característico da transição demográfica, que se desenrola no longo prazo, não foi alterado pela pandemia do novo coronavírus. O maior impacto demográfico da covid-19 deve ficar restrito, fundamentalmente, aos anos de 2020 e 2021, embora, de fato, possa antecipar ligeiramente a data do encontro das curvas de mortalidade e natalidade.

O gráfico abaixo, com base nos dados das Projeções da Divisão de População da ONU (realizadas em 2019, antes da pandemia) mostra que o número de óbitos tem uma tendência de aumento continuado desde 1950 até 2080, enquanto os nascimentos aumentaram de cerca de 2,5 milhões de bebês em 1950 até quase 4 milhões em 1984 e, após 1985, apresenta uma tendência de queda contínua que deve persistir até o final do século XXI. Pela projeção da ONU as duas curvas vão se encontrar em 2045 e a partir desta data se inicia a fase de decrescimento populacional no país. A população brasileira projetada para 2045 é de 229 milhões de habitantes e de 182 milhões em 2100.

Mas se a covid-19 não deve alterar substancialmente o longo prazo da dinâmica demográfica brasileira, o impacto sobre a economia e o mercado de trabalho é tanto imediato, quanto deixará marcas permanentes. Desde a grande recessão de 2014 a 2016, o Brasil está convivendo com a queda da renda per capita e altas taxas de desemprego e de subutilização da força de trabalho. Mas com a pandemia o quadro se agravou, com aumento da pobreza, da fome, da inflação, da desindustrialização, da defaunação, do desmatamento, do endividamento etc.

Dados da PNAD Contínua divulgados pelo IBGE, dia 19/11, mostram que o rendimento mensal médio real de todas as fontes no país passou de R$ 2.292 em 2019 para R$ 2.213 em 2020 – valor mais baixo desde 2013, sendo que metade dos mais pobres tem renda inferior a 1% dos mais ricos. O trabalho é a fonte da riqueza das nações, mas apenas 40% dos brasileiros possuem renda proveniente do trabalho. Desta forma, o Brasil está com um pé na “armadilha da renda média”, pois se a situação já estava ruim antes da pandemia, a crise socioeconômica de 2020 foi quase um golpe mortal na perspectiva de aproveitamento das condições favoráveis da estrutura etária brasileira, como mostrei no artigo acadêmico: “Bônus demográfico no Brasil: do nascimento tardio à morte precoce pela Covid-19” (Alves, 2020).

De certo, a pandemia vai passar e a transição demográfica vai prosseguir seu curso. Mesmo com dificuldades nas áreas da ECOnomia e da ECOlogia, a população brasileira vai sobreviver. A estrutura etária será mais envelhecida. O número de habitantes em 2100 deve ser menor do que o volume atual. Porém, as incertezas surgem em relação às possibilidades de melhoria da qualidade de vida humana e ambiental. Não sabemos se o Brasil das próximas décadas será um país pior ou melhor. O sonho positivista da tríade “amor, ordem e progresso” está sendo atarantado pelo pesadelo da pobreza, da desigualdade e da injustiça. A grande ameaça que pesa sobre o Brasil no século XXI não é o aumento estrutural das taxas de mortalidade individual, mas sim a morte do futuro de uma nação.

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