Por René Ruschel em Carta Capital –
Como Garrincha, seu ídolo, Magrão desconcerta os “joões” da vida
Bar do torto, bairro de São Francisco, em Curitiba. A arte e a genialidade que levaram Mané Garrincha à fama compõem um cenário de catedral. As paredes cobertas por fotos, quadros e recortes de jornais parecem uma arquibancada do tempo, uma via-sacra por estações semidivinas com a saga do “Anjo das Pernas Tortas”. Quem as contempla não consegue evitar a reverência pela figura emblemática. Nenhuma lembra a dor, a tristeza ou o fracasso. Apenas os dias de glória, como convém aos ídolos.
A ideia nasceu da cabeça de Arlindo Ventura, o Magrão, paulista de Mauá, na Grande São Paulo, que se mudou para Curitiba em 1989. Seu primeiro emprego foi em um bar. Ficou um ano, antes de iniciar uma romaria por outros da cidade. Servia à noite e de dia completava a renda com o serviço de manobrista em estacionamentos da cidade. “Cheguei a ficar 36 horas acordado” lembra.
Magrão tinha um sonho, conhecer Londres. Depois de juntar umas moedas, tentou entrar no Reino Unido em 2002. Barrado no aeroporto, acabou deportado. Antes de voltar ao Brasil, teve tempo de flanar por Paris.
Em 2003, correu atrás de outro objetivo, montar o próprio negócio. O nome do bar surgiu ao acaso. Ao rever um velho documentário sobre Garrincha, lembrou-se da mania do craque do Botafogo e da Seleção Brasileira de dar apelido aos colegas. Sobre qual alcunha dera a si mesmo, Garrincha: “Eu sou o Torto”. Nascia a ideia do Bar do Torto em 5 de fevereiro.
A paixão pelo ídolo vem da infância. “Ouvi falar de Garrincha pela primeira vez no dia de sua morte. A partir de então, comecei a ler e me interessar por tudo sobre sua vida.” Nesses 12 anos, O Torto transformou-se em um ícone da culturaunderground e, Magrão, em um agitador de parcerias impossíveis capaz de quebrar até a sisudez e a desconfiança dos curitibanos.
Em 2008, para comemorar os 50 anos do primeiro título Canarinho, na Copa do Mundo na Suécia, instalou uma mesa na rua, em frente ao bar. Convidou Ulf
Lindberg, o filho sueco de Garrincha, fruto de uma aventura com uma camareira em 1959, a crônica esportiva da capital e quem mais se interessasse pelo tema. Denominou o evento de “Quadra Cultural”.
A iniciativa consolidou-se. Em 2011, sentaram à mesma mesa o maestro, compositor e arranjador Walter Branco, que trabalhou com Tom Jobim e João Gilberto, e o cantor Odair José. O debate rendeu uma apresentação no Teatro Guaíra. A produção foi sustentada pela distribuição e venda de ingressos no bar a preços populares. A diferença, Magrão, o mecenas anônimo e solitário, completou do próprio bolso. Também passou pela “Quadra Cultural” o cantor Jerry Adriani. Neste ano, o convidado é Rolando Boldrin. “Quero retribuir aquilo que a vida me deu.”
Não é uma frase de efeito. Em janeiro de 2014, no auge das manifestações contra a Copa do Mundo, em São Paulo, um metalúrgico que voltava da igreja em companhia da mulher e o filho de 5 anos teve seu Fusca 1965 incendiado em plena Avenida Paulista. Era o veículo de passeio e trabalho. Sem o carro, precisou levar, nas costas, um portão. Em Curitiba, Magrão assistiu ao drama pela televisão. Emocionado, decidiu presentear o metalúrgico com uma Brasília amarela, seu xodó.
Um grande presente veio no Natal de 2014. O escritor francês radicado em Nova York Dominique Beaucant resolveu homenagear Garrincha, um de seus ídolos, com o lançamento de um livro nos Estados Unidos (Garrincha, o Rei dos Reis – O divino anjo voa novamente), ilustrado com 245 fotos. Sem nunca ter pisado no Brasil, Beaucant descobriu a odisseia de Magrão em Curitiba e as imagens do bar e de um de seus quadros ilustram a capa e contracapa da obra. Antes, a banda O Rappa escolhera O Torto como cenário para o curta-metragem Fronteira (D.U.CA.). Xandão, integrante da banda, gosta de frequentar o bar quando pode. Em uma certa tarde, o bar semiaberto, para um táxi e a passageira entra e pede para conhecer a casa. Era a cantora Elza Soares, ex-mulher de Garrincha, que fez questão de abraçar o comerciante. Durante a Copa do Mundo no Brasil, o jornalista francês Thomas Badia assistiu a uma partida no Torto e publicou no diário Le Monde a história do Le Grand Maigre.
Magrão não faz planos. Toca a vida. Além dos projetos de cultura popular, decidiu transformar em relacionamento verdadeiro um amor platônico que dura 25 anos. Declarou-se à mulher amada à moda antiga. Enviou uma carta escrita à mão, uma rosa e abriu seu coração. Enquanto espera uma resposta, Garrincha e o Bar do Torto continuam a ocupar plenamente sua alma e seu coração.