Nosso pesadelo está no fim. Mas ao despertarmos, vemo-nos diante de um país a reconstruir e um mundo em guerra e crise civilizatória aguda. Na Retrospectiva 2022 de Outras Palavras, elementos para pensar as novas jornadas
Compartilhado de Outras Palavras
Toda virada de ano evoca esperanças, mas desta vez elas parecem mais palpáveis – e ao mesmo tempo mais incertas. Em uma semana, terminará o longo desconsolo, durante o qual toda ação transformadora parecia impossível e sabíamos que o pior estava ainda por vir. As janelas para um futuro melhor estarão abertas novamente. Mas os que viveram o fim da ditadura pós-64 sabem que a sensação é distinta. Nossas certezas sobre o país e o mundo são mais frágeis. Os riscos políticos e ambientais, maiores. Há enorme alívio e discreta confiança – mas não euforia. Talvez isso nos valha.
O que chamamos de presente, provoca Boaventura Santos num texto recente, “é apenas o momento de interface entre a memória do que fomos e a antecipação do que vamos ser”. Nossa Retrospectiva tem certa sintonia com este pensamento. No tênue intervalo de fim de ano, convidamos a ver, nos acontecimentos deste 2022 que termina, pistas para conhecer – e especialmente agir sobre – o que virá. O fulcro de nossa atenção, como de costume, é o Brasil. É uma satisfação notar que, após muitos anos de mera ação de resistência, surgem esforços para pensar a reconstrução do país, em novas bases. Parte dos textos que selecionamos expressa esta emergência. Ela se manifesta em torno de aspectos muito distintos da vida nacional: direito às cidades, resgate da Petrobrás e do Pré-Sal, educação, produção simbólica, ambiente, soberania digital, reforma tributária, renacionalização da Vale e tantos outros, que fizemos questão de acompanhar ao longo do ano.
Alguns deles são examinados de detalhes. Outras Palavras mantém, e aprimorou em 2022, um projeto complementar: o site Outra Saúde, que publica boletins diários com análises e atualizações sobre a luta em favor do SUS. Os melhores textos estão aqui. Mas também damos destaque especial, na Retrospectiva, à transição agroecológica e à construção de cidades para todos.
Resgatar o Brasil será árduo e complexo. Um dos obstáculos é também tema de um dos capítulos da Retrospectiva: como encarar forças claramente antidemocráticas que agora apresentam-se com duas faces – uma ultraliberal, outra abertamente fascista. Ao longo do ano, o pensamento político deu passos importantes para decifrar este enigma. Um dos insights mais instigantes é o de Bifo Berardi. Segundo ele, temos hoje um “gerontofascismo” – agora incapaz de sustentar um projeto nacional (basta ver como Bolsonaro empenhou-se em destruir as estruturas do Estado), mas igualmente ameaçador para as lutas populares.
A referência ao “gerontofascismo” remete ao cenário internacional. Em 1984, quando caiu a ditadura militar-empresarial no Brasil, dois grandes elementos o marcavam. De um lado, um “bloco socialista” que parecia sólido; de outro, “democracias ocidentais”. Estas empenhavam-se, é claro, em garantir as relações capitalistas; mas tinham compromisso com a preservação da democracia e das estruturas sociais necessárias à própria reprodução do sistema. Quatro décadas depois, o “socialismo real” dissolveu-se e o Ocidente está marcado pelo crescimento obsceno das desigualdades, pelo esvaziamento da política e pela incapacidade de enfrentar ameaças como as catástrofes climáticas e suas consequências sociais devastadoras.
Nossa Retrospectiva sugere textos para compreender os aspectos centrais desta conjuntura: crise do neoliberalismo e ameaça de novas tempestades financeiras; desgaste acelerado do eurocentrismo e do que se denominava “nova ordem internacional”; multiplicação das lutas decoloniais, em esfera global (vide a emergência da China) e no interior das sociedades (desgaste do patriarcado e do supremacismo branco); erosão do mundo do trabalho, porém com surgimento embrionário de novos sujeitos sociais antissistema; cegueira dos governos diante do colapso climático.
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Quais as alternativas? Desde que surgiu, há quase treze anos, Outras Palavras coloca-se o desafio de sondá-las. Nossos textos publicados em 2022, e destacados na Retrospectiva, apontam que a construção teórica e política de lógicas pós-capitalistas continuou avançando. O debate é muito mais rico que a dicotomia Revolução x Reforma, típica dos séculos passados. Aos poucos, ganham terreno propostas como a materialização do Comum em serviços públicos de excelência; a possibilidade de os Estados emitirem dinheiro para satisfazer necessidades sociais e corrigir desigualdades; a Virada Socioambiental (“Green New Deal”), que articula as lutas ecológicas com a agenda social. Também avançam reflexões como a de nossos colaboradores Eleutério Prado (que busca aproximações entre marxismo e psicanálise) ou Ladislau Dowbor (que enxerga o ocaso do capitalismo e se preocupa em disputar o que virá depois).
O capítulo da Retrospectiva dedicado ao debate acima articula-se com outro, sobre o Feminismo e seus novos enfrentamentos contra o patriarcado e o capital. Em tempos tão cheios de incertezas, é reconfortante constatar que parte de ativistas e teóricas feministas instigam reflexões cruciais sobre novas lógicas sociais.
O pesadelo acabou e o caos permanece ao nosso lado. Será possível superar a crise civilizatória de modo positivo – ou seja, estabelecendo lógicas sociais que tenham em seu centro os valores da igualdade e de uma nova relação entre o ser humano e a natureza? Parece difícil – mas é impossível responder sem agir. Há quatro décadas, quando caiu a ditadura, seus opositores estavam provavelmente muito mais seguros do futuro do que nós, agora. Sua autoconfiança era ilusória, porém – como ficaria evidente em seguida. Em 2023, Outras Palavras quer continuar oferecendo informações incomuns e análises surpreendentes. É nossa forma de contribuir para que emerjam, das nossas dúvidas, novas formas de transformar o mundo. Cada vez mais efetivas e certeiras, mas sempre provisórias e prontas a despertar outras questões – porque aprendemos que a História nunca tem fim.