Os proprietários sabiam que o público ia na sua maioria para ver filmes americanos, se valia dos letreiros com as traduções e nem prestava atenção ao som original do filme. Para mim, foi uma delícia, um alívio, quase uma exaltação, quando ouvi um filme que tinha acabado de fazer projetado na Sala 1 do Espaço, como logo o cinema passou a ser chamado pela classe. Vi o filme da cabine de projeção e a plateia reagir lá embaixo exatamente onde devia, sem perder uma fala. Isso era absolutamente sensacional, nos deu dignidade e nos colocou à altura do cinema feito no resto do mundo

Foi na Rua Augusta, em setembro ou começo de outubro de 1993, que, onde por muitos anos fora o Cine Majestic e nos últimos tinha sido apenas suas ruínas e destroços, se inaugurou o Espaço Banco Nacional de Cinema. O impacto dessa nova presença entre os cinemas da cidade foi tão grande em mim, que não consigo sequer lembrar como era o antigo Majestic. Lembro-me apenas do erguido em seu lugar, que ainda está lá mais ou menos intacto até hoje.

Como intactos também estão sua programação de classe e, sobretudo, seu criador, Adhemar Oliveira. É sobre ele que quero falar. Não era raridade entre os amantes do cinema da época. Havia outros preocupados com exibição de filmes de alta qualidade numa cidade cujas salas de cinema tinham sido sequestradas pelo cinema comercial despreocupado e superficial.




Se não foi o único – havia gente como Dante Ancona Lopes ou Rudá de Andrade, entre outros –, Adhemar foi o que teve a percepção mais clara do que era preciso fazer. Teria que pensar grande, o que, se revelou depois, era sua especialidade. Não queria fazer outro cineclube de dimensões acanhadas. Queria um espaço grande para público numeroso, para alargar as fronteiras quase clandestinas do chamado cinema de arte, do tipo do antigo Bijou, na Praça Roosevelt.

Depois de conseguir o patrocínio do Banco Nacional, Adhemar foi logo fazendo três salas, as mesmas de hoje. Esse conjunto é que foi inaugurado em 1993, num período chamado depois de Retomada do cinema brasileiro. Para mim, pessoalmente, aqui em São Paulo especificamente, essa retomada se deveu muito ao Adhemar, a seu arrojo e capacidade de pôr em prática as ideias.

Na verdade, protegido por um exterior despretensioso, simpático, quase bonachão, se esconde um intelectual preparado, de apurado gosto estético e opiniões sobre filmes que surpreendem muitos críticos. Adhemar compreendeu imediatamente que deveria começar sua revolução pelos equipamentos. Havia uma queixa constante quanto ao som dos filmes nacionais. Todos reclamavam que isso era prova da nossa má qualidade e do nosso despreparo.

Quando comecei a fazer comercias para a televisão, percebi logo que o som, de fato defeituoso nas salas, era perfeitamente inteligível nos aparelhos de TV. E tudo era feito com o mesmo material e os mesmos técnicos. Evidentemente, a precariedade de som se devia a equipamentos pré-históricos, obsoletos, malcuidados, que havia em quase todas as salas da cidade.

Os proprietários sabiam que o público ia na sua maioria para ver filmes americanos, se valia dos letreiros com as traduções e nem prestava atenção ao som original do filme. Para mim, foi uma delícia, um alívio, quase uma exaltação, quando ouvi um filme que tinha acabado de fazer projetado na Sala 1 do Espaço, como logo o cinema passou a ser chamado pela classe. Vi o filme da cabine de projeção e a plateia reagir lá embaixo exatamente onde devia, sem perder uma fala. Isso era absolutamente sensacional, nos deu dignidade e nos colocou à altura do cinema feito no resto do mundo.

Além do som, as telas eram novas, limpas, diferentes das telas sujas, carcomidas, amareladas dos cinemas da época, sem falar da qualidade dos projetores, velhíssimos, com luz fraquíssima, que quebravam frequentemente ou mesmo trituravam as cópias, sempre riscadas e com “chuviscos” depois de poucas projeções. Só isso já era uma revolução.

O que se seguiu não foi menos. O que Adhemar Oliveira nos ofereceu depois foi algo ainda mais importante. Foi poder conversar, dialogar de igual para igual com um exibidor. Salvo raríssimas exceções – sempre havia algumas –, os exibidores, donos de cinemas, eram uma espécie diferente de seres humanos. Nada tinham a ver com pessoas do meio. Sequer, creio, gostavam de cinema. Gostavam do dinheiro que um filme era capaz de produzir, sem dúvida. Mas o diálogo era penoso, quase impossível.

Adhemar, vindo da tradição dos cineclubes, afeito ao cinema inteligente, oferecia um diálogo adulto e muitas vezes tinha razão. Não era nem nunca foi o bom samaritano. Tinha um negócio para tocar e esse negócio precisava permanecer aberto. Mas, no meio do caos e da confusão que era, e é, sua mesa de trabalho, foi sempre justo e cumpridor dos tratos e acordos. Eu e muita gente passamos a considerá-lo não mais um exibidor, mas um verdadeiro cineasta por outros meios. Para mim, tornou-se um grande amigo através dos anos e dos filmes que exibi em suas salas. Vi de perto o aumento da sua empresa pelo Brasil, quando se transformou realmente num grande exibidor.

Eu disse tudo isso apenas para uma conclusão importante. Neste momento, toda essa grande arquitetura, toda essa construção de alta qualidade, está em perigo. Adhemar Oliveira, por causa da pandemia e de outras razões, está se vendo na contingência de fechar salas. Nenhuma em São Paulo, o que não é consolo. Qualquer sala fechada em qualquer lugar do Brasil é um sinal sinistro e preocupante. Como Adhemar, Jean-Thomas Bernardini (salas Reserva Cultural), André Sturm (Complexo Belas Artes), Paulo Velasco (Cine Sala) estão seriamente preocupados.

É importante, aliás, um imediato alerta à imprensa, a universidades, associações de classe e todas as forças vivas da cultura, para os resultados do fenômeno da televisão como possível única e hegemônica forma de exibição do audiovisual no Brasil. Neste momento, não é só a Cinemateca Brasileira que corre perigo iminente de extinção. É todo o audiovisual como o conhecemos hoje. A França, como aqui, paralisou as atividades das salas de cinema por mais de um ano. Não tenho notícia de que qualquer delas tenha sequer corrido o risco de encerrar as atividades definitivamente.