Por Claudio Lovato Filho, jornalista e escritor
O editor
O editor manda um e-mail para o jovem repórter. É um retorno sobre a matéria que o repórter tinha lhe enviado no fim da manhã. O editor quer que o repórter pegue mais pesado. Aquele time estava produzindo muito menos do que o esperado, na opinião do editor – a começar pelo principal nome da equipe naquele momento, um armador veterano que (o editor faz questão de relembrar isto no e-mail) só havia conseguido jogar em clubes de segundo e terceiro escalões na Europa.
O repórter
Ao ler o e-mail, o repórter xinga mentalmente o editor. O repórter acha que já havia batido bastante. Seu texto já possuía um tom bastante crítico. A questão – o jovem repórter sabe – é que o editor tem um estilo que alguns classificam como agressivo e outros como escroto. Subiu na carreira assim. Cresceu no jornal assim.
E dane-se – para esse editor e para os que o protegem – se as críticas nem sempre são justas e se as denúncias nem sempre são devidamente comprovadas. Rende cliques, rende visualizações e rende até aumento das vendas da edição impressa? Então, tudo bem. O jovem repórter acha que o jogador não merece ser crucificado – pelo menos não sozinho.
O jogador
O armador, camisa 10 clássico, espécie em franca e acelerada extinção, está lendo a matéria em uma das macas do vestiário, enquanto faz fisioterapia. Sente dor no quadril e no púbis, sente sobretudo dor na parte de fora do pé, bem do lado, numa faixa que vai da área abaixo do tornozelo até o dedo mindinho. Essa dor é nova. Relativamente nova. Uma repuxada. Parece coisa de nervo. Foi inclusive o que ele ouviu os médicos dizerem quando conversavam entre eles: algum tipo de nevralgia. Se piorar ou persistir vão fazer uma ressonância, os médicos disseram.
O jogador não falou tudo; não disse o quanto a dor o está incomodando – em parte porque nunca foi dado a reclamar de dor (ele aprendeu cedo que não existe futebol em alto nível sem dor constante), em parte porque o momento não é o mais indicado para essas queixas. E agora essa bosta de matéria esculhambando com ele! Insinuando (dizendo!) que ele está em fim de carreira.
O editor
Agora, sim. Parabéns. Foi o que o editor escreveu no e-mail que enviou ao repórter assim que concluiu a leitura da nova versão da matéria. Para reforçar o elogio, o editor batalhou por uma chamada de capa e a conseguiu. Matéria com muitas visualizações, muitas curtidas e muitos comentários na edição online. E boas vendas da edição impressa, que anda precisando de gás.
O repórter
Depois de entregar a nova versão da matéria, o repórter se despediu de todos na redação e foi para o boteco encontrar seu parceirão de outros carnavais, hoje fotógrafo em um jornal concorrente.
Era para ser um bate-papo rápido, dois ou três chopes, mas virou uma sessão de desabafo, desabafo transbordante de mágoa e frustração, mas não de arrependimento – e a análise desse fato, mais tarde, é o que levará o repórter a repensar coisas como o que ele gostaria de ser e o que ele realmente é.
O jogador
O impacto do pé na bola. A dor. A reclamação contida. Disfarçando no trote altivo e no sorriso. O temor de perder espaço. O temor de decepcionar. O temor do fim. As tabelas e as assistências continuam acontecendo. E os gols também. Talvez não na frequência de outros tempos, mas continuam saindo.
Suas estatísticas vêm caindo? Até pode ser, mas – ele sabe! – junto com as estatísticas do time todo, números gerais, de todos os setores, defesa, meio-campo, ataque, em quase todos os quesitos. Eu aguento, ele diz para si mesmo, saindo do treino sob a chuva fina.
O técnico
Temos que melhorar a nossa marcação, o técnico diz para o seu auxiliar na beira do campo. Estou me referindo principalmente à marcação na saída de bola do adversário, mas não que a marcação no nosso campo esteja boa, claro, ele acrescenta. O auxiliar balança a cabeça afirmativamente. Vamos ter que fazer ajustes na nossa fase defensiva, acelerar a recomposição, diz o técnico. O auxiliar ouve em silêncio. E vamos ter que compactar mais o time, aproximar mais as linhas, porque sem isso ninguém sobrevive no futebol de hoje, prossegue o técnico, que participa de todos os cursos promovidos pela Confederação (todos) e volta e meia faz palestras motivacionais em eventos corporativos.
O auxiliar balança a cabeça para cima a para baixo e diz: “É isso aí”. Ele sabe que não adiantaria fazer sugestões ou chamar a atenção para outras coisas – a falta de jogadas pelos lados do campo, por exemplo. Ele sabe. Então se cala. Relacionamentos familiares.
Os comentaristas
A matéria do jovem jornalista continua repercutindo com força. As críticas dos comentaristas de internet seguem ganhando volume. No começo, bem no começo, chegou a haver algum equilíbrio entre as reprovações aos negócios feitos pela atual direção, os equívocos táticos do treinador e a (suposta) queda de rendimento do homem contratado para ser o pensador, o articulador, o cérebro do time. Mas isso foi só início, porque logo o jogador se tornou assunto único.
Segundo a opinião que rapidamente se tornou majoritária, senão única, todo o problema do time se resumia ao jogador, que, ao que parece – a julgar pelos comentários –, já podia ser considerado um ex-jogador. Essa mesma opinião, de forma aparentemente mais profissional, foram as mesmas que, a partir de determinado momento, passaram a ser ouvidas e lidas nos jornais, nos sites, nos podcasts, nas rádios, nas TVs e nos programas do YouTube.
O irmão
O jogador tem um irmão mais velho, seu melhor amigo desde sempre. Ele ouve tudo o que o irmão mais velho tem a dizer, porque sua confiança nele é absoluta. Confiança nas intenções e no bom senso do irmão. O jogador leva o irmão mais velho para todas as conversas com o empresário e com dirigentes. A opinião do irmão tem muito peso nas decisões dele, só não tem mais peso que a da esposa. O irmão mais velho acha que é hora de ele começar a pensar em parar. O irmão mais velho acha que ele já fez suficiente, que já fez o que podia, e que é hora de encerrar a carreira, encerrar bem, por cima; o irmão mais velho diz que ele já juntou dinheiro suficiente para não ter problemas na vida de ex-jogador.
Ele tem pensado muito nesse conselho do irmão mais velho e sabe que a esposa não iria se opor à decisão de parar – muito pelo contrário. Mas ele não acha que esteja pronto para parar. Tem medo até do pensamento de parar. E então resolve que o conselho do irmão mais velho é bom, como sempre, mas não vai segui-lo agora, não agora. Mais tarde. Não agora. Um dia, que não deve demorar para chegar. Mas não agora.
A esposa
Seu irmão disse que eles vão crucificar você, a esposa diz. Ele disse que vão botar toda a culpa em você. O jogador ouve, pensa e responde assim: Claro que não! Todo mundo está vendo o que está acontecendo! Eu estou conseguindo manter o meu rendimento. O time é que está uma bagunça. Ele vira para o lado e tenta dormir. Ela continua assistindo um filme turco na TV. Ela tem saudades dos tempos em que moravam em Istambul. Tempos mais divertidos. Tempos melhores.
O irmão
Eles vão usar você como bode expiatório, o irmão mais velho diz ao jogador.
O jogador
Sentado na varanda do apartamento, sozinho, o jogador pensa no que o irmão mais velho disse. As reflexões correm soltas. A torcida gosta de mim, ele pensa. Ela tem direito de reclamar e até de vaiar o time quando achar que as coisas não estão bem. (Neste momento, ele se lembra do avô e do pai, com quem aprendeu a amar o futebol. Eles nunca vaiavam o time. Para eles, verdadeiros torcedores jamais vaiavam o próprio time.
Eu não tenho protetores, não sou puxa-saco, nunca fui, mas sei que o diretor de futebol gosta do meu jogo e não é de hoje. Tanto que esta é a minha segunda passagem pelo clube e as duas foram com ele como diretor.
O repórter
Ele vai para o banco, já está decidido, escreveu o jovem repórter no e-mail ao editor. Acabei de saber.
O editor
Quem entra?
O repórter
Ainda não sei. Acho nem eles sabem.
O editor
E o que mais vão fazer?, o editor pergunta.
O repórter
Nada. Por enquanto só isso.
O editor
Mudanças táticas?
O repórter
Por enquanto não muda nada na parte tática.
O editor
Nada?
O repórter
Nada.
O editor
Então tá.
O jogador
Olha, com os meus 34 anos e perto como está a época da minha renovação eu vou é calar a minha boca, vou calar a boca legal, o jogador diz para si mesmo enquanto dirige para casa. A cabeça está nas mexidas que o técnico fez no treino de hoje. Idas e vindas para ele e alguns outros companheiros entre o time titular e reserva. Usou colete de duas cores no treino, e isso nunca tinha acontecido desde sua chegada ao clube.
Os pensamentos se sucedem em alta velocidade, se atropelam. Vou aguentar o tranco. Espero que essa dor filha da puta desapareça do mesmo jeito que apareceu: do nada. Deus me ajude. Vai passar. Tem que passar. Mas, seja como for, eu aguento. Eu aguento.
O repórter
Não vão renovar com ele, o repórter escreveu no e-mail ao editor. Decisão tomada.
O editor
Vai ser o bode expiatório. Sacanagem.
O repórter
Pois é.
Sobre o autor:
Cláudio Lovato Filho nasceu em Santa Maria (RS) em 8 de abril de 1965. Ainda na infância mudou-se com a família para Porto Alegre, onde, em 1988, formou-se em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Em Santa Catarina, nas cidades de Blumenau e Florianópolis, foi repórter de jornal, assessor de imprensa e redator publicitário.
Transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1992, para trabalhar em comunicação empresarial e realizou coberturas jornalísticas em 20 países.