Os crimes do ex-presidente serão varridos para debaixo do tapete? Não importam as barbáries: as elites tudo perdoam quando trata-se de não perder dinheiro. E o “capitão” pode ser útil: basta uma coleira forte para soltá-lo quando for conveniente…
Por Maurício Abdalla, compartilhado de OutrasPalavras
“He may be a son of a bitch, but he’s our son of a bitch” (“ele pode ser um filho da p., mas é nosso filho da p.”). Essa frase teria sido dita em 1939 pelo presidente estadunidense Franklin D. Roosevelt, a respeito de Anastácio Somoza García, ditador sanguinário e corrupto da Nicarágua, que colocou seus filhos no poder e iniciou uma dinastia, só encerrada com a revolução sandinista em 1979.
O ser “nosso” da frase de Roosevelt, para os que sustentam o poder do capital, significa apenas atender a seus interesses de enriquecimento e exploração sem regras. Por sua vez, ser um “filho da p.” significa desrespeitar todas as regras da democracia, da legalidade e dos direitos humanos. Assim, os que detêm o capital ou os que governam em seu nome aceitam tudo, desde que o pronome “nosso” esteja firmemente anteposto aos demais adjetivos.
Nossas elites brasileiras também têm um “son of a bitch” para chamar de seu. Não importa se ele desrespeitou todas as regras da democracia, interferiu em investigações contra seu filho, espionou cidadãos ilegalmente, tentou golpe de Estado, loteou ministérios, distribuiu verbas públicas para comprar deputados, atacou a imprensa e seus profissionais, incitou o ódio, roubou joias do patrimônio do Estado, misturou público com privado e, pior dos crimes, deixou morrer centenas de milhares de brasileiros por não agir na pandemia, estimular medicamentos ineficazes e pregar contra a vacina e as medidas protetivas. Ele mostrou ser “deles”, então nada disso tem importância.
Não há quem negue que o ex-presidente Bolsonaro foi um “filho da p.”. Mas, ouço agora a mídia corporativa, a Faria Lima, as federações de indústrias, agronegócio, bancos, lideranças políticas da antiga direita que se dizia “democrática”, membros da elite do Judiciário e agentes econômicos estrangeiros dizerem por outros meios: “mas é nosso filho da p.”.
Sendo “nosso”, tudo é perdoado. Bandido bom é bandido obediente aos interesses do capital. O cheiro de acordão começa a se espalhar. Não se mata o cão bravo que ataca os inimigos, mesmo quando ele se descontrola: basta uma coleira forte, para soltá-lo apenas no momento oportuno. Se é ruim com ele, é pior sem ele, já que a única alternativa de poder disponível está perto da esquerda.
As matérias da Folha de São Paulo a partir do dia 13 de agosto de 2024, que revelaram mensagens de assessores do Ministro do STF Alexandre de Moraes, deram início ao segundo momento da estratégia da criação das condições para que se deixe de punir a caterva bolsonarista. O primeiro foi a decisão do TCU sobre o caso das joias. Agora é a vez da mídia corporativa. A matéria inicial da Folha, assinada por ninguém menos que Glenn Greenwald, em colaboração com Fábio Serapião, simula uma ilegalidade inexistente nos inquéritos sob responsabilidade de Alexandre de Moraes no TSE e no STF.
As organizações Globo entraram em campo e seguiram o passo, deixando clara a sua visão em editorial do jornal O Globo de 15 de agosto, segundo o qual, haverá um “debate jurídico” para saber se “Moraes agiu corretamente ou se usou o poder de polícia de que dispunha no TSE para dirigir os inquéritos no Supremo contra seus críticos, misturando indevidamente os papéis de investigador, acusador e julgador” (grifo meu).
Veja como o editorial trata os golpistas, milicianos digitais e espalhadores de fake news: como meros “críticos” de Moraes (ou do Supremo, conforme interpretação que se dê ao pronome “seus” do texto). Além disso, a referência à promiscuidade da Lava Jato é explicita, embora o jornal não tenha sugerido nenhum “debate jurídico” para avaliar a conduta de Moro quando à frente da operação, apesar de tantas críticas vindas do meio jurídico.
Logo depois, o editorial revela plenamente a sua intenção: passar panos quentes em tudo o que ocorreu, não punir ninguém e tocar a vida adiante, como se tudo estivesse resolvido. Segundo O Globo, o episódio das mensagens “demonstra mais uma vez a necessidade premente de o Judiciário abandonar seu ímpeto combativo e adotar uma postura de comedimento em suas ações, de modo a resgatar o clima de normalidade no país”.
Porém, o “clima de normalidade no país” se estabeleceu justamente pelas ações do ministro Alexandre de Moraes. O comedimento que a Globo jamais pediu ao Judiciário na punição sem provas de Lula e na perseguição ilegal da Lava Jato é conclamado agora quando os que estão sob a mira da Justiça são os que tentaram tirar o país da normalidade por meio de um golpe de Estado. E tudo à luz do dia, com provas produzidas pelos próprios delinquentes e amplamente disponíveis nas redes sociais.
O editorial, então, conclui com um recado a Moraes: “o momento agora é outro — e ele, mais que ninguém, deveria entender isso.” Que outro momento seria esse? O momento de deixar impunes e sempre às ordens os “nossos filhos da p.” e concentrar as baterias novamente contra o governo de Lula?
Não é possível confiar em quem tem dinheiro a perder. Frentes amplas para objetivos específicos são necessárias. Mas não se pode apostar todas as fichas em sua manutenção quando interesses econômicos e de poder estão em jogo. Não podemos relaxar e confiar no sistema do capital só porque, em algum momento, seus interesses se cruzaram com os nossos. Mídia e Judiciário sempre fizeram parte da estrutura capitalista de poder.
O caminho é destruir o sistema, organizando e educando politicamente a sociedade, para conquistar o Estado ao mesmo tempo em que se conquista a sociedade civil. Gramsci nos ensinou isso, mas quem usa as suas ideias, paradoxalmente, é a direita. Os partidos de esquerda e os movimentos sociais precisam retomar essa práxis.
Mesmo que o acordão não saia e que Bolsonaro e seus comparsas venham a puxar cadeia, só os seus sinais já nos ensinam a lição. Lembremos que o legado do “son of a bitch” de Roosevelt só se encerrou com a revolução sandinista, que conseguiu unir organização de base com tomada do poder.