O autoritarismo deve ser levado a sério

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Por Alexandre Arbex, do Ipea, Facebook

“Anos atrás, respondendo a jornalistas do Pasquim, Saramago declarou que o humor político, indispensável para testar os limites da liberdade sob governos autoritários, era, apesar disso, uma tática insuficiente de contestação do poder. Um dos entrevistadores discordou citando uma frase de Eça de Queiroz – bastar dar a volta com duas ou três risadas em torno de uma instituição para fazê-la desmoronar –, mas Saramago objetou que a estratégia de retratar pelas lentes do ridículo uma autoridade também poderia favorecê-la: suavizando os males que pretende denunciar, o riso desarmaria a crítica antes de estabelecê-la, porque uma realidade da qual se pode rir ainda é, em certo sentido, tolerável.

Creio que, para fazer uma oposição política e politizada ao governo bolsonaro, a esquerda deveria resistir, tanto quanto possível, à tentação de ridicularizá-lo. O apelo reiterado ao humor como crítica tem um viés reativo e desmobilizador; no limite, é um discurso de negação, realçado por certo elitismo ilustrado típico da esquerda, que não tem graça para a maioria da população. O que faz de bolsonaro uma figura popular – e querida – é que, diferentemente de alckmin ou fhc, ele não tem a afetação aristocrática da direita tradicional (acadêmica, genealógica, patrimonial), aquela altivez mal reprimida dos filhos da classe dominante que deixa transparecer neles a convicção íntima na própria superioridade.




O personagem que bolsonaro encarna tornou-se tão caricato que passou a parecer genuinamente sincero. “Dizer o que pensa” não é o mesmo que “dizer a verdade”, mas, como a franqueza, autêntica ou simulada, de quem fala é frequentemente reconhecida como um sinal de veracidade, o estilo enérgico e canastrão do presidente rendeu-lhe uma sólida reputação de honesto. De resto, a ignorância, que bolsonaro pratica com oportunismo e ostenta como uma virtude cristã, o aparente desconforto dele em ocasiões solenes e formais, a impaciência grosseira com que ele se porta nas entrevistas, tudo isso é, para grande parte da população, um fator de empatia, jamais um motivo de riso.

Mas há outra razão para levar bolsonaro a sério: sua paranóia macarthista é um método de propaganda. Quando, na posse, o ex-capitão assume o compromisso de libertar o Brasil do socialismo, ele certamente sabe que jamais houve nada remotamente parecido com uma experiência socialista no país e que, portanto, não precisa preocupar-se em desestatizar a economia, devolver o sistema bancários às corporações financeiras, desnacionalizar as empresas estrangeiras que dominam o mercado de telefonia ou a indústria farmacêutica e coisas do estilo. Sua retórica de guerra ao socialismo serve, agora, para manter a coesão de sua base e adensar a campanha ideológica pré-eleitoral, cujo eixo segue sendo a construção do inimigo interno. É bastante eficaz, mesmo sendo engraçado, o mito do herói que promete derrotar o monstro fantasma que ameaça seus protegidos e que só ele é capaz de enxergar.

Por isso, o “socialismo” do qual bolsonaro fala é representado como uma conspiração chamada “marxismo cultural”, secretamente instalada em todas as esferas da vida social, da grande mídia à escola pública primária. Não é por acaso que, omitindo a complexidade dos problemas que afetam o ensino no país, bolsonaro atribui ao marxismo docente a culpa pelos maus resultados dos nossos alunos nos testes internacionais. Soa risível, mas esse diagnóstico delirante poderá ser evocado para promover a militarização do ensino básico a pretexto de combater a ideologia de gênero, o comunismo e outras mamadeiras penianas nas escolas brasileiras.

Por isso, também, bolsonaro denuncia o “socialismo” como ameaça à família tradicional e o identifica ao discurso “politicamente correto”. Tal discurso – que chama a atenção para o fato de que a linguagem, não sendo neutra, reproduz preconceitos e naturaliza a violência (física, institucional, simbólica) contra minorias – teria, segundo bolsonaro, um efeito corrosivo sobre a paz doméstica, contestando a divisão tradicional de papéis na ordem familiar. Esse ataque à família, base da sociedade, visaria corromper toda a ordem política, quebrando as hierarquias entre os cidadãos e perturbando, com uma reivindicação da igualdade que põe em evidência nossas diferenças, a identidade “nacional” que encobre nossas desigualdades.

É interessante constatar que, assim como o chamado discurso politicamente incorreto passou a soar como transgressor ou rebelde mesmo sendo a reiteração ultraconservadora das velhas fórmulas do machismo e do racismo, bolsonaro teve êxito em se fazer passar por um outsider do sistema mesmo sendo um político fisiológico, populista e apegado a mandato. A caricatura substituiu o homem, a pós-verdade se sobrepôs aos fatos.”

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