Por Rogério Cerqueira Leite, em seu blog –
Acaba de ser lançada em português a outrora famosa Pequena Crônica de Anna Magdalena Bach*. A edição é uma obra-prima de charlatanice. Fiz uma experiência. Pedi que algumas pessoas examinassem o livro. E depois, procurando não despertar suspeitas, perguntava-lhes sobre o autor. E todos se surpreendiam. Então não fora Anna Magdalena? E, de fato, a edição nada explica. Apenas na última capa informa que “Esta pequena crônica, que apareceu anonimamente na Inglaterra e na Alemanha, já foi traduzida para quase todas as línguas…” Mas em seguida restabelece a farsa afirmando que a “obra nos faz conhecer o Bach de chinelos, o retrato feito por alguém que, a par de ter noção exata da grandeza do biografado, é capaz de nos apresentar a nuance e a riqueza de traços que só os olhos atentos do amor podem captar”.
Ora, ninguém amou Bach com olhos atentos tanto quanto a própria Anna Magdalena, sua segunda esposa. Além do mais, na única nota explicativa, na primeira orelha do livro se afirma enfaticamente: “Esse livro é a história de Johann Sebastian Bach narrada por sua segunda mulher, Anna Magdalena”. Apresentar assim um testemunho sem nenhum comentário sobre as dúvidas que pairam sobre sua autenticidade é, por certo, um desserviço à sociedade, para dizer o menos.
Mas podemos aproveitar essa oportunidade para indagar sobre o Bach doméstico. Lembrando ainda que dificilmente seremos contestados. Pois tanto quanto é rica a literatura crítica sobre sua obra, como é pobre o conhecimento sobre sua vida pessoal. Se estou bem informado, não sobreviveu senão uma única de suas cartas pessoais a amigos. Talvez, dentre os grandes mestres posteriores à Idade Média, apenas sobre Shakespeare saibamos menos. Somos assim obrigados a confiar em uns poucos ofícios, geralmente solicitando emprego ou melhoria salarial, ou dedicatórias. Se sua correspondência pessoal se perdeu ou nunca chegou a existir, pouco importa. Somos assim obrigados a recorrer a sua obra musical até para compreender sua vida familiar.
Não resta dúvida que foi um pai dedicado, pois ensinou, como afirma Carl Philipp Emanuel, tudo que aprenderam, chegando mesmo a escrever álbuns de estudo especialmente para alguns de seus filhos. Fez mesmo de um deles, reconhecidamente débil mental, um instrumentista eficaz. É claro que teve para essa missão a colaboração confiável de sua segunda esposa, Anna Magdalena, uma musicista provavelmente competente. Foi também um esposo dedicado. E é provavelmente certo que tenha orientado Anna Magdalena a organizar seus dois famosos Livros de Anotações. E embora esteja hoje assentado que a maioria das obras foram para lá transcritas pela própria esposa, algumas peças, principalmente, no Primeiro Livro, foram copiadas pelo próprio Bach. É uma coletânea de peças simples (quase sempre) para cravo ou clavicórdio e de canções solo e duetos que, afirmam alguns comentaristas, cantava Bach em conjunto com sua esposa, uma soprano, segundo ele próprio, de qualidade profissional.
Dos vinte filhos (sete com Barbara e treze com Anna Magdalena) sobreviveram dez. Pode-se imaginar que a qualquer momento haveria pelo menos um sentado ao cravo (Bach ao morrer deixou uma meia-dúzia de cravos e clavicórdios, além de outro tanto de instrumentos de cordas, violinos, gambas, alaúdes). E existem, de fato, testemunhos de que Bach, para descansar de suas intensas obrigações musicais, tendo sido obrigado a compor pelo menos uma nova cantata a cada semana durante anos, fazia serões musicais com a família, alunos e amigos.
Mas isso não chega. Não é possível reconhecer aquele protagonista da Pequena Crônica de Anna Magdalena. Talvez possamos percorrer o caminho inverso. Consideremos o bem-comportado cidadão prestante descrito na crônica apócrifa. Seus olhares adocicados na direção da pegajosa bobonne que é descrita como sua esposa. Esse Bach jamais teria sido capaz de compor A Arte da Fuga, nem mesmo a Quinta Suíte Francesa, contida no Primeiro Volumedo manual de Anna Magdalena. O Bach da Pequena Crônica comporia, na melhor das hipóteses, alguma perfumaria como aquelas fúteis e elegantes de seus contemporâneos, Mattheson ou Telemann.
Pois bem leitor, volto aqui a um dos meus velhos temas. Se quiser compreender alguma coisa do Bach de Chinelos, jogue no lixo imediatamente a Pequena Crônica de Anna Magdalena, não pelos seus inúmeros equívocos históricos e conceituais, mas antes de tudo, por uma questão de princípios. É na presença da música e com o auxílio da música que se fala de Bach, inclusive de sua vida familiar. Melhor seria adquirir essa edição em dois compact discs d’O Livro de Anotações de Anna Magdalena com Kipnis, Blegen, Luxon e Meints. E aí sim, terá uma ideia do relacionamento de Bach com sua mulher e seus filhos.
18/12/1988
*Pequena Crônica de Anna Magdalena, Livraria Veredas Editora, São paulo, 1988. Trad. Do francês por Augusto de Souza e Maria Cristina G. Aranyi.
Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 18/12/1988.