Faz parte dos prazeres do botequim conversar fiado com atendentes conhecidos ou com completos desconhecidos sobre as coisas da vida: os problemas do bairro e da cidade, os perrengues e os sucessos da família, as agruras da rotina profissional – e ainda um pouco de futebol, um pouco de música, um pouco de política, um pouco das celebridades em geral. Outro prazer, mais solitário, é ouvir a conversa alheia e viajar nas histórias de quem está na mesa ao lado ou do outro lado do balcão.
Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora
Esses pequenos prazeres, para mim, estão gravemente comprometidos pela enxurrada de mentiras despejadas sobre os brasileiros pelo inquilino do Planalto e seus cúmplices desde 2018. Você acaba ouvindo cada barbaridade – da conversa fiada do desconhecido ou do papo na mesa ao lado – que tem vontade de sair gritando e esbravejando, o que não condiz com as boas regras de convivência em qualquer boteco. A poucos dias do segundo turno, resolvo me poupar desses disparates repetidos por má fé ou ignorância e ir até um bar em que posso tomar uma cerveja sem o perigo de ouvir invenções bolsonaristas – como o kit-gay, o fechamento das igrejas e a volta do comunismo – na mesa ao lado.
Leu essa? 17 razões para não votar em Bolsonaro
Para tentar evitar que essa crônica possa ser usada para espalhar novas mentiras, é necessário frisar que o ex-presidente Lula não é dono de um bar neste morro do Rio de Janeiro. O Bar do Omar – nome do estabelecimento – dispensa explicações: o fundador é Omar Monteiro, o pai; o administrador é o Omar Júnior. Admiradores e eleitores do barbudo de nove dedos, eles decoraram o boteco sob a inspiração do candidato do PT: sua imagem está nas paredes – inclusive em painel da muralista RafaMon, a mesma autora de um Paulo Freire na fachada da Escola Municipal Rivadavia Corrêa. E há estrelas do PT, garçons com o número 13 às costas, e, nesta época eleitoral, adesivos por toda parte do presidente Lula e de seus aliados.
O Bar do Omar fica no alto do Morro do Pinto – bolsonaristas demofóbicos, preconceituosos e ignorantes sobre o Rio de Janeiro, exatamente como o seu mito, já devem estar imaginando uma favela dominada por traficantes armados. Falso. O morro nem sempre é tranquilo – quase nada é sempre tranquilo nas metrópoles brasileiras – mas está longe de ser ameaçador. Em ocasiões anteriores, fui ao bar de táxi; na primeira, em 2017, tinha um “Fora, Temer” em forma de pichação enfeitando a parede. Nesta reta final de segundo turno, resolvo subir a pé para atiçar a sede, abrir o apetite, e dar uma olhada melhor na vizinhança do Morro do Pinto que, além do botequim de Omar pai e Omar filho, tem como atração a Fábrica Bhering, uma antiga indústria de chocolates, que virou uma espécie de centro cultural com ateliers, lojas, escritórios, livraria, cafés e eventos.
A Fábrica Bhering foi fundada em 1880 e chegou a ser a fornecedora oficial de chocolates para a Família Imperial, mas mudou-se para o sopé do Morro do Pinto, no bairro do Santo Cristo, na Zona Portuária, bem perto do Centro, quase 50 anos depois. A instalação da fábrica, com seu prédio de seis andares e máquinas importadas, impulsionou a urbanização da encosta, que começou a ser loteada por um certo comerciante Antônio Pinto Ferreira Morado, de acordo com os historiadores cariocas ainda no fim do século XIX. Devem ser mesmo da época da instalação da Bhering (1930) os sobrados – ou boa parte deles – que garantem ao morro um cenário suburbano: muitas residências têm santos e santas nas fachadas como tantas da primeira metade do século XX no Rio de Janeiro. Vizinhos conversando na porta de casa, cachorros e gatos vigiando as ruas em muros e lajes, crianças brincando: enquanto vou subindo, o tempo parece andar para trás.
Sigo até o alto do Morro do Pinto, acima do Bar do Omar, para ver a Igreja (centenária? não consegui descobrir) de Nossa Senhora de Montserrat e seu pequeno coreto, ambos precisando de melhor tratamento. Já eram quase 17h – o horário oficial de abertura do bar numa sexta como esta é 17h13 – e interrompi a circulação ao ver a Barraca Bela Ciao, com farto material de campanha do Lula, inclusive aquela vistosa toalha. O horário petista não havia chegado, mas o botequim já estava aberto para os frequentadores. A tarde está nublada: nuvens encobrem o alto dos morros e prejudicam a vista da cidade, uma das atrações do Bar do Omar – da varanda, ampliada durante a pandemia, é possível ver da Praça Mauá até a Igreja da Penha, passando por toda a Região Portuária, com seus novos prédios em construção, a Baía de Guanabara e a Ponte Rio-Niterói. Em outros pontos do Morro do Pinto, a vista inclui a Estação Leopoldina, o Pavilhão de São Cristóvão e o Maracanã.
Mas voltemos ao Bar do Omar, onde impera a boa gastronomia de botequim, da carne seca com aipim à moela, dos pastéis aos bolinhos. O pessoal elogia os hambúrgueres e o caldinho de camarão com abóbora, criado para o Comida di Buteco. Mas a casa tem jiló – e jiló, para o meu modesto paladar, é um excelente acompanhamento para cerveja gelada. Gostei do bolinho de jiló com linguiça, mas melhor ainda é a simplicidade do jiló recheado com linguiça, vendido por unidade. Impossível também dispensar Omaraculá, excelente batida da casa, que meu pai, grande apreciador, infelizmente não pode conhecer.
A conversa fiada de botequim aqui gira em torno daquelas coisas todas de outros lugares, com um evidente viés para campanha eleitoral. Fala-se mal, muito mal, do outro candidato – e nem é preciso inventar. Com o bar lotado na sexta-feira, quase não dá para ouvir a trilha sonora. Mas o samba nas caixas é de qualidade – às quintas, fica por conta da roda Sambar&Love. A música é interrompida pelo coro de “Olê, olê, olá, Lulá, Lulá”; e a letra original de Tá Escrito é sobreposta pela clientela: “Erga essa cabeça/ mete o pé e vai na fé/ manda o Bolsonaro embora/ Basta acreditar que um novo dia vai chegar/ o Lula vai voltar”. Se tudo der certo, a comemoração carioca tem que incluir o Bar do Omar.