O bar perfeito, será que existe?

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Frequentadores assíduos comentam o que um bom botequim deve e não deve ter

POR WALTERSON SARDENBERG Sº, compartilhado de seu Blog




Quando a velha redação de uma conhecida revista mudou-se para longe de tudo e perto de nada, uma das primeiras providências foi prospectar um bar nas redondezas. Procura daqui, vasculha dali e… nada. Até que a turma do funil, digo, de jornalistas, descobriu um botequim. Menos. Era só um boteco. Menos. Até para boteco faltava quase tudo. Estava mais para bote, tanto pelas dimensões quanto pela precariedade.

De qualquer maneira, era um bote providencial, do tipo salva-vidas, apesar da cerveja estupidamente morna e do quibe de efeitos avassaladores, logo espezinhado com o batismo «granada de mão». Certo fim de tarde, bebericando, solitário, uma imitação de Campari (da marca Campeão) naquele bote abandonado pelo universo — e, em especial, pela Vigilância Sanitária —, um dos jornalistas (por caso, este que vos escreve) teve um compreensível acesso de autocomiseração e reclamou com um muchocho desolador: «A que ponto eu cheguei!».

Virou o apelido do bote. Pois é, Bar e Lanches A Que Ponto Eu Cheguei.

Como prova de que a condição humana empurra os viventes a adaptar-se às mais sombrias agruras do cotidiano, os colegas de labuta — e de copo — começaram a frequentar aquele bote com ferrenha assiduidade e, com o passar dos meses, até algum carinho. «Te vejo mais tarde no horário de sempre no A Que Ponto, tá?», eis o mote.

Se a ausência de concorrentes e a sede atroz fizeram do,  vá lá, querido A Que Ponto um bálsamo diário, nem por isso qualquer um dos companheiros de redação — um bando de ingratos, ora essa — continuou a frequentá-lo quando a revista mudou de endereço. Todos partiram para bares mais ajeitadinhos.

Quem pode, escolhe. Sobretudo, o próprio botequim.

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O cronista e poeta Paulo Mendes Campos (1922-1991) já havia, décadas antes, encaminhado o alerta: «É preciso escolher bem o nosso bar, pois tão desagradável quanto tomar um bonde errado é tomar um bar errado». Na mesma crônica, o escritor fez um arrazoado do que considerava um botequim ideal: « (…) precisa apresentar cinco qualidades fundamentais: boa circulação de ar, bom proprietário, bons garçons, bons fregueses e boa bebida. Isto é raríssimo de acontecer. Quando o garçom é uma flor de sujeito, o dono do bar costuma ser uma besta; se os fregueses são alcoólicos esclarecidos, o ambiente às vezes é quente e abafado; vai ver um excelente e confortável bar refrigerado, e boa porcentagem de uísque é fabricada em Engenho de Dentro. Para dizer toda a verdade, o bar perfeito não existe».

Será? Sempre uma referência no assunto, o humorista Jaguar, em seu livro Confesso que Bebi- Memórias de um Amnésio Alcoólico (Editora Record, 2001), afirma que «em matéria de bar, uma coisa é certa: ninguém concorda com ninguém». Ele, por exemplo, nutre uma idiossincrasia em relação à assepsia dos botequins, como revela às páginas tantas da obra: «Um bar deve ser, de preferência, razoavelmente limpo. Mas não a ponto de a gente pensar que está bebendo em uma enfermaria. Ninguém morre de infecção contraída em bar. E quantos já morreram de infecção hospitalar?». Outra das exigências de Jaguar: «Seu santo tem de cruzar com o do garçom. É como um casamento. Conheço boêmios que passam mais tempo com o garçom do que com a mulher».

Para o jornalista Antônio Roberto de Almeida, o Machadinho, velho amigo de Jaguar, um garçom de estirpe precisa saber contribuir com a paquera dos clientes. Diz ele: «Ao entregar um torpedo, deve falar bem do remetente. Coisas do tipo: ‘O doutor Maurício é criador de gado Nelore no Pantanal. Tem um canal de TV no Pará. Vem aqui porque gosta de beber um chopinho com os amigos’». Ainda mais prioritário, no entender de Machadinho, é o acesso fácil aos toaletes. Bar com escada íngreme, nem pensar. «A partir de um determinado estado etílico, quando se erra o primeiro degrau também se erra os demais», justifica, do alto de seu 1m54.

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Wladimir Soares, outro jornalista, foi proprietário, em dupla com o ator Antônio Mascchio, de um dos melhores bares paulistanos, o Spazio Pirandello — um must, como se dizia nos anos 1980, tempos do auge da casa. Uma de suas broncas em relação aos endereços de hoje aponta contra os botequins onde se servem apenas cervejas long neck. «É uma invenção muito boa para dono de bar ganhar dinheiro, mas não deixa de ser uma contradição: como ela é mais cara, as pessoas bebem menos». avalia, antes de pontificar: «Bar que é bar tem chope, ou cerveja de garrafa normal».

E televisor, pode? Não para a atriz e diretora de teatro Imara Reis, amiga de décadas de Wladimir Soares. «Quem instala TV e, pior, põe o volume alto, merece passar o resto da vida naquele purgatório que é a estação do metrô Consolação linha amarela de São Paulo», inflama-se. O escritor Ronaldo Bressane, autor dos volumes de contos 10 Presídios de Bolso (Altana, 2001) e Céu de Lúcifer (Azougue, 2003), nada tem contra os botequins com televisor. «Bar é estado de espírito», analisa. «Tem noite que quero sussa, tem noite que prefiro zoeira. E aí cabem até os bares com TV.» O que enfurece Bressane, no duro, são os percalços impostos aos fumantes no momento de sair para dar umas tragadinhas: «Tem lugares que te obrigam a ficar em um cercadinho, feito criança. Outros não deixam você levar o copo. Será que o dono acha que vou roubar o recipiente?».

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A figura do proprietário do bar também mereceu algumas considerações indignadas do dramaturgo Mário Viana, autor das peças Vestir o Pai, Vamos? e Carro de Paulista. Seu recado: «Um atentado contra a boêmia, para mim, é dono de bar que senta na mesa do cliente e se deixa ficar. Passar, bater um papinho, OK. Mas estacionar, atracar, jogar âncora, não pode». Mário também acredita que deveria ser crime hediondo deixar acabar o produto mais forte da casa. «Seja o chope gelado, o bolinho de bacalhau ou o pastel de vento», lista. «Não importa. Se a fama do lugar deve-se àquilo, não pode faltar nem que chova canivete.»

Curitibano radicado na cidade do Rio de Janeiro, o escritor Toninho Vaz, autor das biografias dos poetas Paulo Leminski (O Bandido que Sabia Latim, Editora Record, 2001) e Torquato Neto (Para Mim Chega, Editora Casa Amarela, 2004), não se importa tanto com os canapés, desde que o chope esteja gelado e bem tirado — ih, rimou. Sim, daqueles que a espuma, densa, compacta, mantém um palito perfeitamente de pé, perpendicular à mesa. A maior preocupação de Toninho, no entanto, é a refrigeração do ar. «Passei da idade de encarar bar abafado. Não dá», resume, lembrando que já fez questão de balcão, «para criar calo no cotovelo», hábito perdido no decorrer da história. Ao contrário de seu velho amigo, o cantor e compositor Gutemberg Guarabyra, da dupla Sá e Guarabyra.

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Guti, como é chamado pelos mais chegados, adora balcão. «Mas desde que tenha banquinho e com apoio de pé, para não acabar com a coluna», suspira. Guarabyra gosta tanto de botequim que até já teve um, na praia de Fortaleza, em Ubatuba, litoral norte de São Paulo. «Só não vou a bares com música ao vivo», ressalva. O motivo é particularíssimo: o receio de que o chamem para cantar, em um momento em que ele quer tudo, «menos trabalhar».

Como se vê, dá um trabalhão montar um lugar onde o trabalho, por sinal, é assunto proibido. Há quem reclame até daquelas máquinas elétricas de secar as mãos, instaladas no toalete. Tal invenção, assim como o Conselho de Segurança da ONU, a embalagem de CD e a atual defesa do Vasco da Gama, decididamente não deu certo.

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