Jogamos hoje um jogo em que um time finge que respeita as regras, e usa da força extra-discursiva para dizer onde situam a verdade que encampam.
Por Lourdes Nassif, Compartilhado de Jornal GGN
O Bêbado e o Anestesista, por Jean D. Soares
É uma paródia que inverte o sentido do original. Se a música recorda com nostalgia a esperança de uma pátria livre, num esforço para equilibrar seu futuro, o que vemos aqui é uma constatação triste e nada nostálgica: a pátria está anestesiada e vai outorgando seu futuro a desequilibrados.
O ultraje do crime cometido por um anestesista ou do bolsonarista que invade uma festa de aniversário para assassinar o aniversariante por razões políticas deveriam acender mais do que um alerta. Não há equilíbrio, pudor ou sentimento de esperança suficientes para empatar o sarcasmo de parcela minoritária que apoia quem não tem pudor de mentir, acusar e desmontar o país para defender seus interesses pessoais. Ultrapassamos a linha de censura, a linha de impedimento.
Jogamos hoje um jogo em que um time finge que respeita as regras, e usa da força extra-discursiva para dizer onde situam a verdade que encampam. Como já alertado neste GGN, o número de armas e munições já é maior nas mãos da população civil do que nas mãos de militares da ativa. As forças vão ficando menos-armadas do que gente desequilibrada.
A falta de vergonha que emerge da conjunção desses atos deveria acender um alerta. As eleições de outubro estão simbolicamente e hipoteticamente ameaçadas. Ainda que elas ocorram como a maioria deseja, há claramente uma minoria disposta a criar o terror, a deslegitimar o processo, anestesiando a população, coagindo-a a ir na direção do conflito civil. Atrocidades como essas deveriam ser julgadas de forma célere e competente para que as respostas à sociedade se mostrem exemplares. Não será o que veremos, dada a tradição de leniências com que homens brancos são julgados no Brasil.
A Caixa de Pandora está aberta e dela saíram os machistas, fascistas, racistas, e os etcetera que se dizem nacionalistas, mas não hesitariam em manchar o Brasil de sangue para dizer que estão com o poder, porque, convenhamos, ninguém tem razão ao abusar da força. Vamos numa corda bamba até as urnas. E esperamos que o resultado das urnas seja justo, que o eleito assuma e que a vida siga, só que isso começa a parecer excelente exercício de wishfull thinking, de ideias espontâneas. A situação não está se configurando assim e os riscos estão subindo de nível a cada segundo. Não quero aqui estimular o discurso alarmista. Só é preciso nos manter firmes, convictos e exigentes, sem almoçar com quem defende torturadores, genocídios. Vamos manter nossas cabeças erguidas e escolher livremente quem acreditamos ser o melhor candidato, e se for preciso, daremos os braços para proteger o país de gente estúpida, desequilibrada, anestesiada e bêbada que, por ventura, se arme contra aquilo que supõe defender – o povo. Eu quero de volta, e suponho não estar sozinho, o país de gente que acredita no equilíbrio e na embriaguez da alegria, para deixar para trás a memória desses tempos em que tudo se confundiu, se deturpou.
A quem acredita que entramos num caminho sem volta, a história já testemunhou o contrário muitas vezes. A Alemanha de hoje faz questão de tirar lições de um passado sombrio. Tomara que possamos fazer o mesmo desses tempos em que a saúde, o pudor e o governo foram postos à parte.
Jean D. Soares é doutor em filosofia.