Por José Antonio Costeira –
“O Bêbado e a Equilibrista” faz 40 anos em 2019. Desconfio das coincidências, das evidências, das clarividências; tenho um pé atrás com numerologias. Mas neste ano alguns homens, mulheres outros bichos quiseram que, em 2019, o Brasil fosse governado por ditadores de coldre e pijama, caubóis do agronegócio e pastores do ciberespaço (olha aí a farsa com vontade de ser tragédia, como diria o filósofo alemão). Do Olimpo, só para se divertir à custa de nossas asneiras, Apolo e outros deuses fizeram com que a posse do Mito coincidisse com o aniversário de lançamento da canção de João Bosco e Aldir Blanc, por Elis Regina, no disco “Elis, essa mulher”. A música virou Hino da Anistia. Ironia das ironias, quem sabe não esteja na raiz desse mesmo perdão deslavado, amplo, geral e irrestrito, mais para “desculpa aí, foi mal”, a semente do fruto podre, plantado lá atrás, e que colheremos todos no ano que vem.
Mas, voltando à canção, passados 40 anos trata-se ainda de uma das mais geniais alegorias produzidas em nossa música. Alegoria tão alegórica, tiro tão certeiro, drible tão desconcertante que nem mesmo o juiz e a censura federal a derrubou na área antes do grito de gol. Na voz de Elis choraram Marias e Clarices a volta do irmão do Henfil, por tanta gente que partira; ficamos na berlinda com o bêbado, louco (com chapéu coco) e a equilibrista (esperança que dança na corda bamba de sombrinha) sabendo que “em cada passo dessa linha” poderíamos nos machucar.
Com arranjo belíssimo de César Camargo Mariano (ah!, aquela introdução de acordeão com sonoridade de realejo), quem sabe se transformou numa das cinco mais belas interpretações de Elis em toda sua carreira. “O Bêbado e a Equilibrista” não apenas fazia (ainda hoje faz) com que a gente encarnasse Carlitos; chorasse a pátria, mãe gentil; tentasse balançar no arame, num fim de tarde tenebroso, que ora anunciava uma volta aos porões ora o renascer de uma bela manhã perdida.
No estreia do Anhembi, em São Paulo, Elis apareceu com cabelos mudados, mais longos e românticos. O falecido cartunista Henfil, irmão de Betinho, disse ter ido ao show a pedido dela: “Quando cheguei, ela me mostrou uma fita do João Bosco cantando ‘O Bêbado e a Equilibrista’. Eu não me lembro de ter gostado ou não da música. Ela ficou chorando o tempo inteiro […] Talvez ela tenha antevisto a importância que teria essa música, coisa que eu não percebi”, registrou Regina Echeverria em “Furacão Elis”.
No show não houve concorrentes, mas, no disco, “O bêbado e a Equilibrista” competia com faixas que, fácil-fácil, já eram ou se tornariam clássicos: “Cai dentro” (Baden Powell/Paulo Cesar Pinheiro), “Essa mulher” (Joyce/Ana Terra), “Basta de clamares Inocência” (Cartola), “Beguine dodói” (João Bosco/Aldir Blanc/Claudio Tolomei), “Eu hein, Rosa! (João Nogueira/Paulo Cesar Pinheiro)”, “Altos e baixos” (Suely Costa/Aldir Blanc), “Bolero de Satã (Guinga/Paulo Cesar Pinheiro)”, “Pé sem cabeça” (Danilo Caymmi/Ana Terra) e “ As aparências enganam” (Tunai/Sérgio Natureza).
Que munição musical! E que time! Além do próprio César nos teclado; o LP trazia entre outras feras Hélio Delmiro, na guitarra e violão; Luisão, no baixo; Paulinho Braga, na bateria e percussão; Márcio Montarroyos, no trompete; Chico Batera, na percussão; Chiquinho, no acordeão; uma canja de Joyce ao violão em “Essa mulher” e participação especiais de Cauby Peixoto em “Bolero de Satã”.
O problema (ou a solução) é que a música empunhava a história em cada nota, em cada frase interpretada e literalmente vivida por Elis. A história cantada não como uma roupa velha, mas empunhada como um lenço branco, um aceno. Chegava uma hora – e naquela época já tinha passado da hora – em que a dor da ausência de “tanta gente que partiu num rabo-de-foguete” doía no coração do estudante, do bancário, do operário, da dona de casa ou mesmo de quem pensava ser Maria a virgem mãe de deus. Quem sabe, desde lá, tenhamos perdido essa capacidade de sentir a dor alheia que, no fundo, sempre é a nossa.
A tal lei 6.683/79, a Anistia – que também fará 40 anos -, acabou saindo na base do “deixa pra lá”, do “daí não passa”, do “depois a gente acerta”, jogando no mesmo balaio assassinos e assassinados, torturadores e torturados. Punidos mesmo, só os que até hoje sentem a dor, daqueles que desconhecem em qual cova procurar os pais, mães, filhos, filhas, irmãos e amigos. O fato é que, desde então, Betinho voltou e se foi, Elis morreu e Clarice continua aos prantos – agora com a gente no backing vocal. Mas não tem nada, “a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar”. E sempre continua.