O beijo dos mascarados na festa da democracia

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O diálogo não pôde prosseguir, interrompido pelo cerimonial. Os dois líderes políticos pertencem a gerações diferentes, mas os fios que as unem costumam se reencontrar com frequência. Em nossa América, já se passaram muitos anos desde que essas rupturas brutais aconteceram, com um custo muito elevado para a sociedade, especialmente para os jovens  

Por Álvaro Caldas, compartilhado de Ultrajano




Ia fazendo uma leitura dinâmica das páginas do jornal até o momento em que me deparo com uma foto em que dois mascarados se beijam, rodeados de soldados, fotógrafos e cinegrafistas.  Com uma máscara cirúrgica branca, ela estende o braço direito e faz um gesto de carinho alisando os cabelos dele. Receptivo, ele afaga o próprio peito com a mão por cima da faixa presidencial e sorri com os olhos. 

A foto me emociona por seu simbolismo histórico e pela carga de dramaticidade que as personagens carregam. Um enlace improvável, que o destino cuidou de agendar. E me leva a rodar na cabeça o premiado documentário de Petra Costa, Democracia em vertigem, que reconstitui os conturbados momentos que levaram aos impasses, às traições e ao golpe de 2016.

Não deu para ouvir o que disseram um para o outro, Dilma Rousseff, a ex-presidente brasileira, e Gabriel Boric, recém-empossado como o mais novo presidente da história do Chile. A mineira Dilma, 75 anos, presa e torturada na ditadura, pode ter perguntado: “Será que um dia nos veremos livres de viver em governos ditatoriais?” Gabriel, 36 anos, até há pouco um líder estudantil de esquerda, nascido no extremo sul da Patagônia, mencionou o anseio por mudanças e a palavra “esperança”.

O diálogo não pôde prosseguir, interrompido pelo cerimonial. Os dois líderes políticos pertencem a gerações diferentes, mas os fios que as unem costumam se reencontrar com frequência. Em nossa América, já se passaram muitos anos desde que essas rupturas brutais aconteceram, com um custo muito elevado para a sociedade, especialmente para os jovens.  

Ficou uma herança de horrores difícil de ser posta de lado. Temos dificuldades para concluir a tarefa de enterrar os escombros deixados pelos generais que se sucederam no poder. Tudo o que decorre desta herança de destruição tende a bloquear a democracia.  

Na geração de Dilma, jovens latino-americanosousaram tentar a tomada do poder pelas armas. Foram massacrados. Cobrindo um período de mais de uma década, eles deslocaram-se por vários países da América e da Europa, numa espécie de diáspora de uma geração esfacelada. Atingida no momento em que iniciavam a vida adulta, tiveram seu destino pessoal alterado pelo vento forte da história. 

No Chile de Boric, um sangrento golpe militar derrubou e matou o presidente Salvador Allende. Foi uma geração que enfrentou golpes militares e conviveu com diferentes e humilhantes formas de capitulação, para viver em regimes em que a liberdade foi pisoteada. Muitos desses combatentes desapareceram, enterrados em cemitérios clandestinos ou jogados no mar, com pedras amarradas nos corpos, sem nome e identidade. Tinham entre 16 e 25 anos. 

Em momentos diferentes, Dilma e Gabriel são personagens desta engrenagem vertiginosa, transmissores de uma memória de brutalidades. Mas voltemos ao começo de tudo. Poucos dias depois veio o golpe, e com ele a debandada. Com um frio no estômago, ligo de um orelhão para avisar Bebeto e Max, que dormiam clandestinos no aparelho. A meu lado, Rita adverte que o melhor é fazer a mochila e se mandar para a Suécia. Mas para esta noite, talvez seja mais seguro dormir na casa dos pais. 

Quem também desapareceu nos últimos dias de 1972 ou nos primeiros de 73 foi o Lincoln. Ele e Sandália andavam sempre juntos. Pedrão reapareceu tempos depois exilado na Europa. Primeiro esteve na RDA, de onde saiu depois de vários acontecimentos desagradáveis com a turma do Partido de lá. 

Estava casado com Ângela e decidiram seguir para Paris. Certa noite, entorpecidos pelo vinho, deitados nus num colchão estendido no chão, discutiram sobre a beleza e a verdade. Ângela perguntou o que ele via de tão exuberante naquele quadro de Van Gogh. Sua reposta foi: “Eu gosto de suas cores e de sua tranquilidade”. 

Nas primeiras semanas após seu retorno, enquanto caminhava perturbada pelo cheiro ácido das ossadas, Solange percebeu que conseguira decorar os nomes e as datas de nascimento e morte dos que foram enterrados naquele terreno. Levava nas mãos para casa gravetos e folhas secas do mato rasteiro. Caminhava devagar, atormentada por terríveis acessos de ansiedade que a acometiam, que poderiam durar horas e horas.

Na verdade, todo mundo já o tinha como morto, sua morte pareceu normal a todos. Uma semana depois, Cabral reapareceu acompanhado de uma mulher jovem, uma falsa loura que ninguém na Organização conhecia. No ponto, ela pediu fogo para acender um cigarro sem filtro, enquanto cada um de nós foi se afastando devagarzinho.

Dilma poderia ter vivido o papel de qualquer um desses. É uma mulher forte, que ocupou um lugar de protagonista desde jovem. Que não se submeteu. Que construiu algo inusitado numa mesma vida. De guerrilheira encarcerada, chegou à presidência do país, a primeira mulher a consegui-lo.

  No convívio político, alguns a consideravam intratável, outros, arrogante. Para os mais chegados, era meiga. Especialmente quando tinha na mão uma taça do tinto argentino Angelica Zapata Malbec e a conversa girava sobre livros, teatro e cinema. Isolada politicamente, foi golpeada ao final de seu segundo mandato.

Gabriel Boric veio depois. Apareceu como liderança política estudantil ao comandar protestos pela gratuidade da educação. Em abril de 2019, foi protagonista do acordo político que convocou um plebiscito para reformar a constituição herdada da ditadura. Inicio do processo que iria levar à sua eleição. Não havia nascido quando Allende foi assassinado no La Moneda, em 1973. 

  Mas é a presença de Allende, ainda dominante na alma chilena, que faz o elo entre as gerações. Numa complexa interação entre os fatos e a história, o momento culminante da chegada ao poder de Boric foi a posse, no Ministério da Defesa, da bióloga Maya Fernandes Allende, 50 anos, neta do ex-presidente. No vídeo divulgado, ela desce de um carro na frente do prédio, caminha com altivez enquanto é saudada por um toque de corneta de uma pequena formação militar. O chefe da guarda a saúda: “Bom dia, senhora ministra!” A mulher responde e entra em seus novos domínios

A tragédia marcou a história da família. Sua mãe, Beatriz, que estava ao lado do pai no dia em que o Palácio foi bombardeado, matou-se anos depois, com um tiro no peito, no exílio em Cuba. Maya tinha 6 anos. São imagens que compõem um alucinante painel de vertigens em que a democracia na América desponta e é golpeada. Painel que abro com o beijo dos dois mascarados na cerimônia de posse de Gabriel Boric.

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