O bom negócio da floresta de pé

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, publicado em Projeto Colabora – 

Comunidades mostram que é possível gerar renda e conservar, mesmo em áreas de conflito na Amazônia

Altamira (PA) – Viver na Terra do Meio, gerindo seus recursos naturais de forma sustentável, é missão para os fortes. Inserido na Bacia do Rio Xingu, esse corredor florestal amazônico de 8,5 milhões de hectares – quase a extensão do estado de Santa Catarina – é formado por dez áreas protegidas (três Terras Indígenas e sete Unidades de Conservação). Independentemente de representar um território sob proteção legal, essa última grande fronteira verde do sudoeste do Pará se tornou um cenário de conflitos, envolvendo desmatamento, garimpo ilegal e invasão de terras, nas últimas duas décadas. Essa realidade, contextualizada na publicação Rotas do Saque, do Instituto Socioambiental (ISA), pressiona as comunidades tradicionais e amplia a vulnerabilidade ambiental, sobretudo nas áreas diretamente afetadas pela polêmica Usina Hidrelétrica de Belo Monte, com reservatórios situados entre os municípios de Altamira, Senador José Porfírio e Vitória do Xingu.




Para que se tenha uma ideia das pressões enfrentadas pelas comunidades tradicionais da Terra do Meio, diante da falta de fiscalização, entre outros fatores, o desmatamento ilegal atingiu 37.359 hectares em 2018, nessa região paraense. Desse total, 5.466 hectares de mata nativa foram retirados somente na Terra Indígena Cachoeira Seca, do povo Arara. Considerada a Terra Indígena mais desmatada do Brasil, essa área protegida perdeu 19.474 hectares, desde 2009. Somente nos dois primeiros meses de 2019, mais de 100 hectares de novas aberturas ilegais foram identificados no seu território, segundo o Sistema de Monitoramento SiradX que permite acompanhar o desmatamento na região do Xingu.

A proteção da floresta passa pela capacidade de sua exploração sustentável por populações tradicionais. E a força destas populações será tanto maior quanto mais elas se beneficiarem das relações com organizações que não fazem parte do seu universo, que ampliam seus horizontes e lhes permitem esta unidade tão única entre suas tradições e processos criativos de inovação

Ricardo Abramovay
Economista da USP

Seguindo na contramão desse cenário de altos impactos ambientais e de tensões sociais permanentes, ribeirinhos, populações indígenas e agricultores familiares se uniram e estão fortalecendo uma cadeia produtiva inovadora, denominada de rede de cantinas da Terra do Meio. O termo cantinas é inspirado nos antigos barracões onde os seringueiros da Amazônia entregavam a sua produção de borracha, no século passado, em troca de alimentos básicos e, muitas vezes, ainda ficavam endividados com os chamados patrões de seringa. Mas no presente, esse arranjo produtivo nada tem de sujeição já que todo o trabalho é realizado em cooperação, tendo sido eliminada até a figura do atravessador, intermediário que, historicamente, sempre lucra mais do que os próprios produtores.

Marco de abertura da transamazônica, em Altamira, ao lado do que sobrou da castanheira. Foto Elizabeth Oliveira
Marco de abertura da Transamazônica, em Altamira, ao lado do que sobrou da castanheira. Foto Elizabeth Oliveira

As atuais 27 cantinas (eram 22 até o ano passado) funcionam como entrepostos onde são comercializados os produtos florestais não madeireiros pelos grupos de extrativistas mais próximos. Os chamados cantineiros são escolhidos pelas comunidades para fazer esse gerenciamento local. Eles contam com capital de giro (atualmente totaliza R$ 560 mil) para pagar pelas mercadorias dos produtores que serão destinadas às empresas, com as quais são realizadas negociações diretamente. Assim, os recursos financeiros circulam continuamente entre os participantes da rede, o que faz a diferença para comunidades localizadas em áreas remotas.
Esse arranjo produtivo agrega, ainda, 44 paióis de estocagem e mobiliza 81 comunidades, representadas por 15 associações de extrativistas. Entre 2018 e 2019, as suas vendas alcançaram R$ 1,9 milhão, motivadas principalmente pela safra recorde de castanhas-do-pará na temporada.

A iniciativa vem conquistando cada vez mais mercados interessados em matérias-primas amazônicas produzidas de forma sustentável. Nas seis miniusinas, gerenciadas pelas próprias comunidades, estão sendo beneficiados onze produtos como borracha, castanha-do-pará, óleos, sementes e farinhas (a de babaçu com cacau é uma das mais promissoras). Os ingredientes são fornecidos para empresas fabricantes de alimentos, perfumes e cosméticos, além de destinados à preparação de refeições em escolas públicas e vendidos em alguns estabelecimentos comerciais, incluindo a loja online do ISA.

“A proteção da floresta passa pela capacidade de sua exploração sustentável por populações tradicionais. E a força destas populações será tanto maior quanto mais elas se beneficiarem das relações com organizações que não fazem parte do seu universo, que ampliam seus horizontes e lhes permitem esta unidade tão única entre suas tradições e processos criativos de inovação”, afirma Ricardo Abramovay, professor da Universidade de São Paulo (USP), em  artigo sobre como as inovações socioambientais fortalecem comunidades na região do Xingu. Nesse texto, publicado no #Colabora, o economista ressalta a importância dos arranjos produtivos comunitários para a manutenção de floresta de pé, nessa região de rica biodiversidade e diversidade cultural, mas também marcada por conflitos, tensões e ilegalidades.

A perspectiva de Abramovay se encaixa perfeitamente no contexto da Sexta Semana de Extrativismo (Semex), evento organizado pelo ISA e instituições parceiras, realizado na primeira semana de junho, em Altamira. Nesse encontro, foram promovidas tanto rodadas de negócios como mesas de debates sobre ações inovadoras e desafios relacionados à produção, ao gerenciamento dos estoques e às vendas da rede de cantinas da Terra do Meio.

Lado a lado se sentaram lideranças comunitárias, executivos, consultores, além de ambientalistas, representantes de organizações governamentais e não governamentais e outros apoiadores dessas iniciativas que se contrapõem ao tradicional modelo de desenvolvimento da Amazônia, pautado, desde a década de 1970, pelo desmatamento para a produção agropecuária, extração mineral e outras atividades de altos impactos socioambientais.

Mantas de borracha das comunidades extrativistas secam ao sol. Foto Otávio Almeida/ISA
Mantas de borracha das comunidades extrativistas secam ao sol. Foto Otávio Almeida/ISA

Como parte das conquistas da rede de cantinas, Raimunda Rodrigues, gerente da miniusina instalada na Reserva Extrativista (Resex) Rio Iriri, ressalta a eliminação dos atravessadores dos processos de compra e venda da produção comunitária. “A gente era enganada por eles”, recorda durante a abertura dos debates da Semex. Ela conta que a consolidação desse arranjo produtivo permitiu que as lideranças comunitárias passassem a negociar diretamente com as empresas compradoras, o que tem agregado valor à produção e garantido remuneração mais justa aos produtores.

Nos espaços da Semex, realizada anualmente desde 2014, lideranças comunitárias e representantes das empresas fazem acordos que incluem o reajuste de preços das matérias-primas para a próxima temporada de vendas. Todos os custos são apresentados, detalhadamente, facilitando os argumentos sobre os valores que garantem uma remuneração justa para os produtores.

Um exemplo envolve a produção de castanhas-do-pará da rede de cantinas que bateu recorde no período 2018/2019. Foram vendidas 15,8 mil caixas do produto in natura, por uma média de R$ 88, cada. O reajuste desse valor ainda está sendo negociado com os principais compradores, dentre os quais, a fabricante de pães e bolos Wickbold. Considerando que na próxima temporada a tendência é de queda da produtividade, que oscila naturalmente entre um ano e outro, os parceiros discutem que R$ 100, por caixa, para o produtor, é um preço que remuneraria de forma justa os extrativistas. Valores adicionais incluem outros custos do processo produtivo que estão em negociação.

Antigos e novos desafios

O percurso trilhado pela rede “não foi fácil”, relata Raimunda Rodrigues. Ela conta que um dos principais desafios envolveu a confecção de maquinário para as miniusinas, onde os multiprodutos das comunidades extrativistas passaram a ser beneficiados. “Foi preciso dialogar com as fabricantes de máquinas, fazer testes e errar muito até que os moinhos, as prensas e outras ferramentas atingissem o padrão necessário”, recorda.

A gestora e demais lideranças participantes da Semex consideram que, a ampliação dos oito atuais contratos assinados, para a venda de matérias-primas, representa um dos principais desafios da rede para que seja possível ganhar mais escala. Para isso, ela defende que outras empresas precisam conhecer a experiência que está transformando a produção comunitária da Terra do Meio e ajudar a fortalecer, ainda mais, essa iniciativa.

As 10 áreas protegidas que integram a Terra do Meio:

  • 3 Terras Indígenas: Cachoeira Seca, Xipaya e Curuaya

  • 7 Unidades de Conservação:3 Reservas Extrativistas: Resex Rio Iriri, Riozinho do Anfrísio e Rio Xingu1 Área de Proteção Ambiental: APA Triunfo do Xingu1 Estação Ecológica: Esec da Terra do Meio1 Parque Nacional: Parna da Serra do Pardo1 Floresta Estadual: Flota Iriri

Rodrigo Junqueira, do ISA, afirma que a experiência da rede de cantinas da Terra do Meio reúne um grande processo de aprendizado coletivo, embora tenha enfrentado muitos percalços até a sua consolidação. “Demorou muito para selar esse cavalo”, compara. Na atualidade, segundo o ambientalista, a iniciativa tem chamado a atenção de organizações no exterior que demonstram interesse em replicá-la. Para ele, em um momento em que o Brasil passa por grandes retrocessos na agenda socioambiental, esse é um exemplo de inovação que merece ser cada vez mais reconhecido por simbolizar uma fortaleza em termos de articulação comunitária em um território alvo de tantos conflitos e ameaças.

Diante de inúmeras ameaças sofridas pelas populações indígenas da Bacia do Rio Xingu, Eduardo Barnes, da organização ambientalista The Nature Conservancy (TNC), afirma ser fundamental desenvolver estratégias de gestão que possam fortalecê-las economicamente, incluindo ações de valorização de seus produtos, já que a geração de renda para esses grupos sociais não se resolve com a demarcação de seus territórios. Considerando esse contexto, ele também ressalta que a experiência da rede de cantinas da Terra do Meio é exemplar e merece ser replicada por representar uma alternativa exitosa de proteção das florestas e dos povos que residem nessas áreas.

Ao apresentar um balanço das principais atividades da rede de cantinas, referente ao período 2018/2019, Fabíola Silva, do ISA, recordou que em 2009, quando a experiência começou a funcionar com um entreposto, o movimento de articulação da rede de produção comunitária ainda não tinha sido nomeado dessa forma. Mas, desde então, a iniciativa tem atraído a atenção de outros grupos e não parou mais de se ampliar continuamente.

O capital de giro foi um dos grandes avanços conquistados nesse período, segundo ressaltou, permitindo que as atividades da rede pudessem funcionar sem ficar na dependência do pagamento das empresas. Ela também considera fundamental a ampliação da quantidade de contratos para garantir a sustentabilidade da rede e destaca que esforços têm sido feitos com esse objetivo.

Para isso, a realização da Semana de Extrativismo é vista pelos seus organizadores como uma ação central, já que permite o diálogo com antigos parceiros comerciais e sempre agrega novos interessados em realizar negócios com os extrativistas. Da mesma forma, o evento motiva a adesão de outras comunidades que ainda não estão negociando seus produtos a partir desse movimento em rede, cujo enfoque também envolve o intercâmbio de conhecimentos, ideias e valores.

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