Por Luiz Antonio Simas, Blog Histórias Brasileiras –
O fim da escravidão exigiu redefinições nas estratégias de controle dos corpos e coincidiu com os projetos modernizadores que buscaram estabelecer, a partir da segunda metade do século XIX, caminhos de inserção do Brasil entre os povos ditos civilizados. Tomo o Rio de Janeiro, minha cidade, como horizonte dessas reflexões.
A relação das elites e do poder público, dentro dessa aventura modernizadora, com os pobres era paradoxal. Os “perigosos” maculavam, do ponto de vista da ocupação e reordenação do espaço urbano, o sonho da cidade moderna e cosmopolita. Ao mesmo tempo, falamos dos trabalhadores urbanos que sustentavam – ao realizar o trabalho braçal que as elites não cogitavam fazer – a viabilidade desse mesmo sonho: operários, empregadas domésticas, seguranças, porteiros, soldados, policiais, feirantes, jornaleiros, mecânicos, coveiros, floristas, caçadores de ratos, desentupidores de bueiros… A velha máxima da escravidão se redefinia: é o senhor que depende do escravo, e não o inverso.
Essa prevenção contra a pobreza articulou-se também no campo do discurso em que atua a História como espaço de produção de conhecimento. Apenas elementos externos aos pretos, índios e pobres em geral – a ciência, o cristianismo, a democracia representativa, a economia de mercado, a inclusão pelo consumo de bens, a escola ocidental, etc. – poderiam inseri-los, ainda que precariamente e como subalternos, naquilo que imaginamos ser a história da humanidade.
É nesse recorte que eu procuro, no meu trabalho como um historiador de rua, produtor de conhecimento fora do espaço normativo e necessário da acadêmia, combater essa “negação da história” que invibiliza os que não se enquadram no processo civilizatório excludente projetado no Brasil.
Eu sou um historiador de sambistas. foliões anônimos, bêbados líricos, jogadores de futebol de várzea, clubes pequenos, putas velhas, caminhoneiros, retirantes, devotos, iaôs, ogãs, ajuremados, feirantes, motoristas, capoeiras, jongueiros, pretos velhos, violeiros, cordelistas, mestres de marujada, moças do Cordão Encarnado, meninos descalços, goleiros frangueiros, namorados de subúrbio, baianas do samba, catimbozeiros, encantadas do Lençol, capangueiros da jurema, donos e fregueses de botequins, apontadores do bicho, alabês, runtós e xicarangomos dos tambores de santo.
Me interessam as histórias de todos aqueles, enfim, que escapam ao acolhedor espaço de privilégios de um Brasil pensado em gabinetes, casas grande, salões imperiais, articulações empresariais e coisas do gênero. Nesta toada busco evitar, e nem sempre consigo, o risco da romantização do precário, e tensionar as relações sociais em um campo de articulações muito distante do discurso apaziguador e cordial que nega aquilo que, em boa parte, o Brasil é: um país projetado pela lógica da chibata, do pelourinho, do extermínio de índios e da submissão dos pobre a partir da domesticação dos corpos e da negação das culturas.
Esse pequeno texto, de resto, pretende apenas, numa circularidade, terminar como começou: o problema brasileiro passa, em larga medida, pela manutenção do traço mais profundo da nossa formação, aquele que se revela ou se esconde em inúmeras variantes que, todavia, obedecem ao mesmo mote desde o século XVI: confinar, afastar, normatizar, negar, domar, usar, punir e descartar todas e todos que ameaçam o projeto predator e civilizatório das elites do Brasil continua sendo a pedra de toque da ordem e do progresso nesse canto do mundo.