Por Saul Leblon para Carta Maior –
Não foram apenas 3 pontos. Foram 53,5 milhões de brasileiros que decidiram dobrar a aposta na construção de uma democracia social.
Não foram apenas três milhões de votos.
A importância histórica deste 26 de outubro de 2014, quando as urnas deram um segundo mandato à Presidenta Dilma Rousseff, e um quarto e sucessivo governo progressista ao Brasil, não pode ser medida apenas pela margem de três pontos que marcou a derrota conservadora.
Em primeiro lugar, não foram apenas três pontos.
Por trás deles, a sustentá-los com desassombro e resistência, estão 53,5 milhões de brasileiros que decidiram avalizar o passo seguinte do projeto iniciado em 2003, dando-lhe mais quatro anos no comando do país.
É uma vitória tão monumental quanto o gigantesco aparato que foi preciso derrotar para atravessar essa dúzia de anos e obter a dianteira nas urnas no último domingo.
Há um filme à espera de um diretor, e ele precisa ser feito para que se possa visualizar o conjunto dos interesses, as massas gigantescas de forças que se uniram, dentro e fora do país, na tentativa de capturar o processo democrático brasileiro em um torvelinho de incerteza, medo, crispação política, sabotagem econômica, boatos, manipulação midiática e envenenamento do imaginário social.
A disputa encerrava uma dimensão geopolítica capaz de influenciar os acontecimentos na América Latina e a agenda da luta pelo desenvolvimento em diferentes partes do mundo.
Não era pouco o que estava em jogo, portanto.
De um lado, a agenda da restauração neoliberal no país; de outro, o aprofundamento de um projeto de desenvolvimento soberano, associado à justiça social.
Avulta até aos mais distraídos os lances de audácia golpista desfechados contra o discernimento da sociedade nos meses, nas semanas, nos dias e horas que antecederam o escrutínio dessa disjuntiva.
Enganou-se quem imaginava que a capa criminosa de Veja, na edição delivery para a campanha de Aécio, em que buscava incriminar diretamente Dilma e Lula com o escândalo da Petrobrás, seria o auge, a bala de prata da véspera.
Não era.
Com o país já nas filas da urna veio o novo petardo.
Um boato de envenenamento do delator do caso Petrobrás, tinha o ardiloso propósito de confirmar o enredo fraudulento veiculado por Veja, e induzir o voto pelo medo e a indignação.
O assunto mereceu uma entrevista ao vivo, feita pela rádio CBN, com o candidato Aécio Neves.
Repita-se: isso, enquanto milhões de eleitores se encaminhavam para as urnas.
Foi um ensaio de golpe paraguaio, talvez só abortado pela presunção conservadora de que a eleição estava ganha.
Portanto, é preciso reafirmar alto e bom som: em 26 de outubro Dilma conquistou uma vitória histórica.
Aécio Neves foi derrotado. E duplamente, porque perderia de novo em seu estado natal, onde Dilma abriu uma vantagem de cinco pontos sobre o tucano.
Vale dizer que ali onde o candidato do PSDB governou por duas vezes e fez toda a sua carreira, Dilma conquistou uma vantagem superior à obtida na média nacional.
Está longe de ter sido uma vitória qualquer.
Mas, sobretudo, foi uma vitória da coragem do eleitor humilde e solitário que enfrentou, resistiu e não se dobrou diante do paredão midiático antipetista, confiando seu voto em Dilma.
É evidente que um Presidente da República, vencido esse Rubicão tormentoso, tem a obrigação de conduzir a pacificação, como Dilma já acenou que o fará em pronunciamento, em Brasília, logo depois de proclamada a vitória.
Trata-se de erguer pontes entre as margens extremadas da disputa. Desarmar a crispação conservadora. Desautorizar o revanchismo dos que não aceitam a urna quando perdem. E fustigar o preconceito dos que desvalorizam o voto do pobre que não elege o rico.
Mas que fique claro a natureza do que aconteceu no último domingo de outubro no Brasil: o país dobrou a aposta na construção de uma democracia social no século XXI no coração da América Latina.
A negociação, portanto, deve ocorrer em torno desse projeto.
E não de qualquer outro que o desautorize, ou pretenda emasculá-lo.
A negociação deve contribuir para dotar o projeto vitorioso nas urnas das ferramentas democráticas e institucionais necessárias à pavimentação do seu percurso na vida da nação.
É nesse ponto que a reflexão sobre a vitória se entrecruza com outra questão central.
Aquela não poucas vezes tratada neste espaço e que na verdade antecede e se superpõe ao resultado da urna.
A esfinge que desafia o campo progressista brasileiro é uma versão turbinada da encruzilhada que assola a esquerda mundial, desde que ela passou a disputar os votos da sociedade para gerir o Estado, ainda sem ter o poder de modifica-lo.
E, portanto, com o desafio de construir uma correlação de forças capaz de viabilizá-lo.
A assimetria não é ignorada pelo PT.
“(o partido) é prisioneiro de um sistema eleitoral que favorece a corrupção e de uma atividade parlamentar que dificulta a mudança, a despeito da vontade das forças progressistas (…) As medidas de reforma do Estado não foram capazes de remover os obstáculos burocráticos que criam empecilhos para o avanço mais rápido dos grandes projetos de infraestrutura, vitais para dar nova qualidade a nosso desenvolvimento” .
O trecho acima consta do texto-base do V Congresso do PT e grita a sua atualidade diante das expectativas e tarefas postas pela vitória deste domingo.
Não por acaso, em seu pronunciamento, já reeleita, a Presidenta Dilma reiterou o compromisso matricial do segundo mandato com a reforma política e a Constituinte exclusiva para implementá-la.
Não se trata apenas de arejar as instituições contra o efeito corrosivo do financiamento de partidos e candidatos pelas plutocracias.
É também uma questão de vida ou morte da engrenagem do desenvolvimento.
Transformações democráticas fornecem, muitas vezes, a única alavanca capaz de remover obstáculos econômicos intransponíveis quando abordados no âmbito de sua própria lógica.
Os impasses sobrepostos na engrenagem do desenvolvimento brasileiro –de natureza cambial, industrial e monetária– implicam romper estruturas anacrônicas, descontentar interesses calcificados e construir novas turbinas de dinamismo.
Durante boa parte de seu ciclo de governo, o PT acreditou que era possível reacomodar essas variáveis com ajustes a frio, ao largo de uma contrapartida de maior participação democrática dos principais beneficiados por essas transformações.
Os acontecimentos da mais feroz campanha eleitoral travada na história do país deram ao campo progressista uma segunda chance de se desfazer dessas ilusões.
O trunfo nas urnas foi crucial para aliviar o torniquete conservador que imobiliza a ação econômica do governo desde meados de 2013.
Mas está longe de encerrar a disputa.
A curto prazo ela talvez até se acirre.
Construir uma alternativa à lógica rentista que exaure a sociedade, tem maioria no legislativo, detém meios financeiros para sabotar a economia e dispõem de um oligopólio midiático especializado em subordinar as expectativas da sociedade aos seus desígnios, não se faz do dia para a noite.
Sobretudo, não se fará sem um protagonista social que a conduza.
Justamente porque avançou muito nos últimos anos, explorando as linhas de menor resistência, mas também indo além delas em algumas áreas, o Brasil talvez esteja muito perto de ter atingido o limite nessa trajetória a frio.
Não avançará muito mais a partir de agora se menosprezar os interesses catalisados pelas políticas populares dos últimos dez anos.
Os avanços concretos amplamente reconhecidos no cotidiano do país –tanto que deram um novo mandato a Dilma– formam os pilares dessa travessia.
Mas o que consolida a ponte entre o velho e o novo é o salto no discernimento histórico da sociedade.
Sua emergência requer informação plural e participação direta nas grandes decisões que dirão presente na agenda do segundo mandato da Presidenta Dilma.
Desse conjunto poderá nascer a nova hegemonia, da qual a democracia social brasileira depende para existir.
Mas ela ainda não existe. E há quem pretenda que isso nunca venha a ocorrer.
O escândalo da revista ‘Veja’ mostrou apenas a ponta de um iceberg que se mantém intacto após o resultado das urnas.
Subestimar seu poder de fogo, mais uma vez, envolve o sério risco de se criar um desencontro definitivo entre a construção negociada de uma democracia social no país e as forças sociais dispostas a bancá-la.
Dilma e o Brasil ganharam mais quatro anos para evitar esse desfecho.
Convém não desperdiçar o tempo.
O outro lado não o fará.