O Brasil dos golpes e da autocracia camuflada

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Por Victor Silveira Garcia Ferreira, Justificando – 

Em face do advento da crise do século XIV, a nobreza feudal europeia foi se enfraquecendo paulatinamente. A única saída ao perecimento da hegemonia foi aliar-se aos segmentos burgueses, já componentes da sociedade à época, e centralizar o poder do Estado nas mãos do Monarca. Com o financiamento da burguesia comercial e a legitimidade ao exercício de poder dada pelo Clero, a nova forma de organização política, liderada pelo rei, possibilitaria a expansão religiosa, a conquista de novos mercados, a superação dos entraves burocráticos do Feudalismo e a reafirmação da supremacia dos nobres, que poderiam jungir as massas camponesas a novas formas de domínio.

No ano de 1383, em Portugal, ocorreu a revolução de ‘’Avis’’, responsável por inaugurar a estruturação do território em Estado Nacional moderno, através da consolidação da aliança real com a burguesia. Entre os séculos XIV e XV, Portugal modificou toda sua sustentação administrativa, incluindo a burguesia mercantil ativamente nas decisões governamentais, que passou, a partir de então, a conduzir os negócios da economia. Tais fatores, pioneiros, fizeram do país lusitano o precursor da expansão marítima. E o Brasil, como se sabe, foi uma de suas colônias.




Na época da colonização do Brasil, o Estado português era absolutista, porém dotado de uma estrutura burocrática administrativa escolhida pelo rei, composta predominantemente por membros da burguesia, como supracitado. Por esta razão, o historiador Bóris se refere à forma política portuguesa como ‘’coroa patrimonialista’’, sistema em que o rei deveria levar em conta os interesses dos diversos estratos, no entanto a ele pertencia a palavra decisiva. E o mercantilismo, doutrina econômica empreendida pela metrópole para explorar seus locais de domínio, tinha como objetivo a garantia da autossuficiência do Estado por intermédio das extrações coloniais, monopólio da corte metropolitana. As três primeiras décadas de ‘’conhecimento’’ do Brasil caracterizaram-se pela diligência dos portugueses em apropriar-se de fato da ‘’nova terra’’. A colonização efetiva pode ser compreendida somente após o estabelecimento das capitanias e ao ser instituído, pelo rei, a sede administrativa da colônia: o ‘’governo-geral do Brasil’’. Posteriormente, a corte optou por incentivar as empresas comercais coloniais, assentes na ‘’grande propriedade’’. Daí em diante, o trabalho escravo é oficializado e, devido ao fracasso da escravização indígena inicial e à atração do comercio negreiro, os africanos são eleitos como vítimas da ‘’barbárie’’ opressiva, que, ‘’ipsto facto’’, se prolonga até os dias atuais. E foram, justamente, os burgueses latifundiários e escravistas que se sedimentaram no poder colonial, em conjunto com o poderoso grupo que se consolidou ulteriormente, os traficantes de escravos.

Consoante aos ensinamentos do professor Antonio Mazzeo, é possível afirmar que as relações sociais no Brasil colonial representavam um capitalismo particular. A escravidão se tornou instituição nacional, o que afastava o caráter capitalista clássico de exploração amparado no trabalhador assalariado. A razão da utilização dos escravos como mão de obra encontra respaldo na carência de força de trabalho no século XVI; a disponibilidade de trabalhadores livres era realidade em apenas algumas regiões da Europa ocidental. Depreende-se, que a escravidão africana representou uma alternativa rápida à mobilização de mão de obra direcionada à produção em grande escala. Não seria proveitoso para a metrópole exportar trabalhadores livres, pois, devido à ociosidade de terras, sem dúvidas, os assalariados deixariam os latifúndios e formariam seus próprios terrenos.

Adiante, as últimas décadas do século XVIII foram pontuadas por inúmeras transformações de ordem política e ideológica, resultando na crise do antigo regime, ao qual Portugal estava completamente subordinado. No Brasil, os reflexos dos ditames burgueses preconizados pelo iluminismo foram imanentes, sucedendo uma série de revoltas; nenhuma, porém, conseguiu concretizar a liberdade do território. Como observa o professor Bóris Fausto, a independência do Brasil não viria por via revolucionária, mas por um processo de que resultaram algumas mudanças e muitas continuidades com relação ao período colonial (FAUSTO, 2015). Na realidade, os ideais políticos traçados pelo iluminismo, que motivaram as revoluções liberais, eram profundamente indesejados pelos membros da classe dominante do Brasil, afinal, a reforma da estrutura de produção e das relações sociais da colônia colocariam em risco sua fonte primordial de lucro – a escravidão- e sua autocracia colonial. Para Portugal, atrasado economicamente, a superação do mercantilismo também não era interessante, pois poderia acarretar a perda do seu controle colonial, fonte basilar da economia.

O fator imediato do processo de independência se dá com a transmissão da família real para a colônia. Em 1808, com o escopo de fugir das tropas napoleônicas, a corte portuguesa transferiu-se para o Brasil, elevando o território à categoria de reino. E a Inglaterra, concessionária da esquadra que conduziu a fuga, acabou recebendo em troca alguns benefícios no plano econômico. Claro que a maturidade do capitalismo já solidado também influenciou a outorga dos privilégios, os quais seriam aproveitados similarmente pela burguesia brasileira, que pressionava pela ‘’reforma’’ econômica. Tais fatores foram cruciais para que D. João decretasse a abertura dos portos às nações amigas, modificando a conjuntura de submissão à metrópole. Adota-se, assim, a doutrina liberal de modo limitado, restrita apenas ao plano econômico, superando os entraves metropolitanos prejudiciais aos comerciantes brasileiros. Politicamente, D.João apenas instaurou a estrutura administrativa de Portugal e compôs o Estado de modo a conservar as relações de produção existentes na colônia, deixando toda a massa às margens do governo.

A abertura dos portos estabeleceu uma ponte de interesses entre a coroa portuguesa e a elite brasileira, pois incentivou a expansão econômica e garantiu a vida ‘’estável’’ da antiga colônia, desejada por ambas. Outrossim, a burguesia colonial, temendo por uma ruptura social, precisou adaptar-se com a forma política imposta pela metrópole. Somente o poder metropolitano estaria apto a garantir a paz à produção latifundiária. Sendo assim, a estabilidade da sociedade colonial foi certificada mediante um vínculo implícito do Estado com os latifundiários, assegurando o fim da intervenção econômica, enquanto a ‘’casa grande’’ firmava o apoio ao exercício do poder pelo monarca. Esta era a força antirrevolucionária da ‘’colônia’’.

O estopim para a emancipação de fato foi a ‘’revolução liberal do porto’’, em Portugal, marcada pela reivindicação da burguesia local, que postulava, dentre outras coisas, pela recolonização do Brasil. Este foi o coeficiente da tensão do ambiente político no Brasil, além do motivo substancial do rompimento da burguesia brasileira com Portugal; somente a partir deste momento a classe dominante colonial anseia pelo rompimento com a metrópole. No meio da reviravolta lusa, Dom João, temendo perder o posto de rei, regressou ao seu país e deixou seu filho, D. Pedro, como príncipe regente no Brasil.

Dom Pedro foi o principal objeto de articulação dos latifundiários e traficantes, principalmente na figura de José Bonifácio. Estes, basicamente, se aproximaram e prometeram-no garantir o cargo de Imperador se declarasse a independência sem a participação popular, diferente do modus realizado nos processos de independência dos países da América. A aceitação da ‘’proposta’’ pode ser verificada no ‘’dia do fico’’, o qual é marcado pelo início dos atos de ruptura. No dia 7 de setembro de 1822, Dom Pedro cumpre o acordo e se torna o primeiro imperador do país insurgente. Aparece até hoje como o protagonista do ato de cessação, o ‘’herói’’ representante da vontade nacional que gritou bravamente pela independência às margens do rio Ipiranga. Declarada a Independência, o Brasil conseguiu romper com Portugal, mas a estrutura colonial permaneceu intacta.

Na realidade, o ato simbólico que representa a emancipação constitui apenas um compromisso premeditado do ‘’Estado’’ com a burguesia agrária. A independência nada mais foi do que um golpe, uma contrarrevolução, processada inteiramente pela classe hegemônica, a qual percebeu a necessidade de ter as rédeas do processo revolucionário em mãos, sob pena de possibilitar a emancipação da sociedade colonial – composta majoritariamente por escravos- o que ocasionaria a queda de sua soberania. Ademais, as experiências burguesas demonstraram que a participação da massa no processo revolucionário acabou por restringir os privilégios de autoridade direta. Por esta razão, a elite brasileira resolveu adequar-se às tendências iluministas, de modo restrito, ao contexto social vigente, reformando moderadamente e mantendo seu domínio estrutural. A independência foi apenas um arranjo político preparado, como ressalta Caio Prado Jr. Observa-se, então, que o país adquire sua autonomia mediante um golpe de classe que, assim como os recentes, se sobressai pela alienação e pelo caráter ‘’antipovo’’ oculto em seu eixo.

Mazzeo define a independência como uma espécie de bonapartismo, isto é, movimento precursor da solidificação de um Estado neutro às classes e que pretende representar todas elas; porém seu verdadeiro sentido é reafirmar e estabilizar a ordem social de classes antagônicas de modo a não modificar sua infraestrutura. Acaba atuando, necessariamente, conforme as pretensões da classe dominante. No Brasil, o ‘’bonapartismo colonial’’ foi o grande responsável pela manutenção do sistema escravista de exploração. O autor supramencionado ressalta, ainda, que o fenômeno em referência é mais evidente no segundo reinado, após o ‘’golpe da maioridade’’, com o qual se pretendia estabilizar o panorama conjuntural, repleto de revoltas tempestuosas.

Percebe-se, diante da sucinta descrição histórica, que a elite nacional compunha, no período colonial, uma verdadeira autocracia. Interessante observar que a história brasileira, desde o princípio, é constituída de golpes camuflados. Ainda hoje as rupturas de ordem predominam, mas de modo peculiar, sendo executado de modo impessoal e abrigado por um ente terceiro aos explorados e exploradores.

O pensamento iluminista e sua subsequente aplicação foram os responsáveis por colocar em risco os privilégios da autocracia burguesa brasileira. Kant foi um dos expoentes teóricos do movimento burguês, referencial na postulação em defesa dos supostos direitos naturais do homem: propriedade privada, liberdade de negócio e igualdade perante a lei. Entendia que tais princípios estavam fundados na razão e que deveriam ser assentados em normas categóricas, ordenatórias e universais. É preciso ressaltar que o Iluminismo fundou a base teórica do marco político do capitalismo: as revoluções burguesas. E, atualmente, constata-se claramente que as delineações kantianas foram o principal arcabouço criador da estruturação central do Estado contemporâneo e do direito, aos quais se confere o status de detentores da razão. Nas faculdades de Direito, por exemplo, inconscientemente atribui-se aos artigos jurídicos o caráter de absoluto; estuda-se muito o ‘’dever ser’’, a razão burguesa, mas ignoram-se as relações sociais, que deveriam ser a essência de um curso ‘’humano’’. Francamente, estamos formando proletários do direito, técnicos de luxo em favor de uma classe que sempre esteve por trás do aparato superestrutural sustentando sua autocracia. Precisamos de Juristas!

O capitalismo clássico- de bases iluministas- apenas se manifesta no Brasil no momento em que todos os cidadãos (escravos, indígenas, camada média e elite) passam a ser reconhecidos como sujeitos de direitos, aptos a contratar livremente. A democracia frágil que hoje se observa, porém, foi alcançada tardiamente. Mesmo com o reconhecimento dos direitos subjetivos, nem todos possuíam capacidade de representar e ser representado politicamente. Na república velha, por exemplo, os coronéis nada mais eram do que os antigos latifundiários. A conciliação do instituto da igualdade formal com os direitos políticos só veio a ocorrer com Getúlio Vargas. Desde então, houve a separação, em tese, do poder político com o poder econômico: o presidente da república não necessariamente integra o grupo que detêm a soberania econômica; eis uma das grandes particularidades do Estado hodierno! Entretanto, o exercício de qualquer cargo do Estado ainda encontra-se completamente condicionado ocultamente aos interesses dos detentores dos meios de produção, principalmente no Brasil.

A priori, o triunfo dos candidatos está relacionado diretamente ao montante recebido no financiamento eleitoral, fator primário de aproximação do poder econômico com o político. Além do mais, a nossa comunicação em massa, claramente elitista, tem o poder de talhar diretamente as subjetividades e manipular as vontades, orientando o nosso caminhar rumo à razão kantiana, que só pode ser encontrada nos segmentos dominantes. Outro fator importante na garantia do Estado burguês oculto, é o fato de a maioria dos integrantes do poder legislativo serem financiados diretamente pelos detentores dos meios de produção. Assim, estabelece-se uma base apta a aprovar ou rejeitar projetos de governo, e também a promover eventuais golpes políticos, quando o representante legítimo não simboliza mais os interesses dos grandes especuladores. Verifica-se, assim, que mesmo em plenas democracias, os representantes burgueses apropriam-se muito mais do Estado do que as outras classes. Se analisarmos a atual composição do Congresso Nacional será constatado rapidamente que os seus membros não representam a diversidade da nossa população.

No tocante ao rigor normativo, nossa carta constitucional, além de assegurar as bases capitalistas, garante uma série de direitos sociais. Porém, as questões estruturais são asseveradas com eficácia imediata, já os direitos sociais são programáticos, ou seja, necessitam de atos materiais ou ‘’dispositio legislatoris’’ infraconstitucional para que haja a concretização efetiva- são vinculados ao Congresso. O Estado é o aparato necessário à reprodução capitalista, e possibilita à classe que chegou ao poder apenas a luta pelas formas previstas nos termos jurídicos e políticos pré-estabelecidos, visto que a estrutura de produção e os frutos que emanam dos princípios iluministas são garantias imutáveis.

O grande paradoxo é que, o mesmo modo de produção que dispõe da democracia, possui mecanismos antidemocráticos que roubam a cena quando se supõe a tentativa de disfunção dos mecanismos esqueléticos. Como em 1964, em que o golpe militar deixou bem claro o vínculo do Estado com os grandes empregadores, financiadores do rancoroso regime com o intento de resguardar seus interesses. E o modo de execução golpista foi bastante similar ao ocorrido na independência: a burguesia elegeu terceiros para representarem seus privilégios, sobre os quais recaiu todo o ônus. Por fim, o último golpe, que depôs a presidente Dilma sem fundamentos jurídicos pertinentes, surge para comprovar a tese do ilustre Marx, da qual se extrai que nenhuma reforma efetuada de dentro do Estado é permanente, mas apenas um componente de alienação das massas, que indubitavelmente será derrubada com um golpe nas razões da própria Ordem.

O que nos leva a uma profunda reflexão…

Enquanto dinheiro for poder e estiver restrito a apenas um por cento da população, não há que se falar em democracia, mas em alienação. E como exigir confiança se o que fará do outro maior são suas relevâncias? Como lutar por emancipação se os mais vulneráveis compõem o sustentáculo da exploração? Como pedir a união dos oprimidos se eles são moldados à própria autodestruição? Como acabar com a miséria se é ela que possibilita a manutenção? Bem vindos ao egoísmo camuflado de falsa generosidade, do qual o Estado é o aparato necessário; lutar somente por ele significa, apenas, atestar o óbito do proletariado! Precisamos centrar-nos a mudar as bases, as relações sociais de proveito, para o qual se necessita de muito ‘’peito’’. UNI-VOS.

Victor Silveira Garcia Ferreira é estudante de direito – Faculdade de Direito da PUC-Campinas. Integrante do grupo de estudos avançados em escolas penais – GEA- IBCCRIM. Autor do hino da ADC-INTELLI. Monitor virtual de história, direitos humanos e direito penal – WEEAZY.COM

MAZZEO, Antonio Carlos. Estado e Burguesia no Brasil. 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2015.
FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. 3. ed. São Paulo: Edusp, 2015.
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

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