Por Bruno Lima Rocha, Jornal GGN –
Introdução
Circula um debate entre a esquerda brasileira onde o eixo da polêmica é a “ausência do povo na rua”. É óbvio que a capacidade de mobilização das camadas mais humildes de nossa sociedade está muito distante de um mínimo patamar necessário para a defesa dos direitos coletivos. Por outro lado, a crise brasileira contemporânea passa pela explosão mobilizadora de 2013, o abismo ideológico que não avançou no período de maior crescimento econômico (2003-2014) e a ascensão da chamada “nova direita”, ou o pensamento conservador transformado em ação política através da internet brasileira. Neste breve artigo, debatemos o país em transe e apontamos uma das possibilidades de trabalho de inserção social e disputa ideológica mais urgente, a partir das entranhas da base de nossa injusta e absurda pirâmide social.
A crise e o transe
Analistas, como este que escreve, divergem quanto ao início da crise política brasileira contemporânea. Alguns classificam o seu começou nas jornadas de março, abril, maio, junho e julho de 2013 – com ênfase para o sequestro da pauta pelos conglomerados de mídia em São Paulo. Outros apontam o início desta com o segundo turno de 2014, quando houve uma corrida eleitoral entre dois projetos políticos – o neoliberalismo subordinado de Aécio Neves e o do capitalismo nacional periférico de Dilma Rousseff. A presidenta foi reeleita, escondeu seu vice-presidente (Michel Temer) durante a campanha e rasgou sua credibilidade ainda naquele ano, quando indicou Joaquim Levy – homem de confiança de Armínio Fraga – para a pasta da Fazenda. Desde então o país entrou em transe, adaptando o conceito do genial cineasta baiano Glauber Rocha.
Um dos aspectos deste “transe político” se dá na pouca penetração do drama e escândalos nas camadas populares do Brasil. Após 13 anos de governos lulistas (com giro à centro-esquerda), os benefícios materiais de 44 milhões de pessoas não refletiram em maior capacidade organizativa. Ao contrário. A massa foi entregue às loucuras do pós-fordismo (trabalhando, fazendo bicos, estudando de noite e sobrevivendo nas regiões metropolitanas) e não teve – ou não tem – canais de interpretação da crise política brasileira. O modelo econômico dos campeões nacionais está criminalizado, assim como as lideranças empresariais (menos os financistas e barões da mídia) e os políticos profissionais. Seria um momento ímpar para mobilizar socialmente, mas faltam os intérpretes.
Se o esforço militante pudesse ser um pouco voltado para a difusão de informações, interpretando as obviedades nos noticiários que circulam em grandes conglomerados de comunicação, já seria um grande aporte. Um exemplo disso vem da Bolívia, antes da eleição de Evo Morales. Quando da revolta de El Alto (cidade periférica de La Paz), na chamada Guerra do Gás (outubro de 2003), o papel da juventude aimará foi fundamental. Combinando a radiodifusão local – universitária e comunitária – e a exposição de jornais murais nas paradas de ônibus ou transporte alternativo, a militância se parava ao lado das notícias impressas e estabelecia um debate permanente. O clima de agitação foi consequência também da penetração crítica das informações relatando atos de governo.
A denúncia de imoralidades ou os constrangimentos públicos para a elite política brasileira já não bastam. No início de 2015, a nova direita – através da internet – capturou essa indignação num voo de galinha verde, terminando com o episódio do golpe com apelido de impeachment. Como a crise segue e a Lava-Jato se tornou a Operação Mãos Limpas do Brasil, teremos uma permanente instabilidade somada a ataques sistemáticos aos direitos coletivos. Para além da agitação, é necessário interpretar e fazer circular a crítica. Ou seja, ainda falta muita presença comunicacional de rua, carece de presença em concentrações urbanas e populares, nem que seja nos centros urbanos nas horas de pico.
A difícil disputa nas redes sociais conservadoras
Existe um discurso conservador anti-mídia ou alimentado por veículos próprios. Ao contrário das mídias e portais alternativos, críticos à esquerda ou vinculados ao governo deposto, e que vivem na penúria, as estruturas midiáticas das “igrejas” neopentecostais e do “mito” cibernético Jair Bolsonaro estão em abundância de recursos. O problema é esse. A direita saiu do armário, tirou o “visual” e sobra na internet e nos canais neopentecostais de TV UHF.
No Brasil, a internet e as redes sociais têm alguns pontos obscuros. Se em escala mundo, a chamada deep web e o navegador Tor são as vias de acesso para o que há de mais inescrupuloso e indefensável no planeta, aqui este universo do horror político está na seguinte inflexão: a extrema direita não tribalizada e seu campo de relações. Quando afirmamos “não tribalizada”, me refiro à direita extremada, com inclinação de linha chilena – economia de mercado selvagem e autoritarismo de Estado – e não caracterizada em “tribos” urbanas como se dava nas últimas duas décadas do século XX. Insuflando ou retro alimentando a candidatura do deputado Jair Bolsonaro (ainda no PSC/RJ) estão os princípios de “família tradicional” e “defesa da hetero-normatividade”. Ou seja, a base de comportamento conservador está associada às identidades políticas compartilhadas tanto por viúvos da ditadura militar como por pregadores da Teologia da Prosperidade, embalados na onda dos Fariseus Ostentação.
Não é fácil lutar nesta trincheira e por vezes sequer é possível. Mas, de algo tenho certeza. Disputando ideias fundantes como a existência ou não de Deus, do materialismo ou idealismo, assim como outros dogmas à esquerda reproduzidos através da falta de inserção social, não chegamos a estabelecer uma base de convencimento da pobreza conservadora brasileira. Se Henrique Meirelles, o banqueiro ministro da Fazenda, reuniu-se com mais de 4000 pastores da Assembleia de Deus do Pará (ver goo.gl/fe3bQ4) , é urgente convencer um percentual mínimo dos fieis manipulados por estes gerentes com franquias para arrecadar dinheiro em espécie sem tributação. Logo, não é negando a religiosidade desta massa que vamos convencê-las, mas talvez debatendo o sentido fundante do cristianismo como revolução social humanista. Para além da retórica e verborragia, ultrapassando a manipulação grosseira da mão de obra treinada por mais de dez conglomerados empresariais “religiosos” existe uma imensidão de brasileiros na base da pirâmide social, alvo destes profissionais da memória e do imaginário coletivos.
A difusão da história social brasileira, com ênfase para o cristianismo popular e rebelde, como nas guerras camponesas de Canudos e Contestado, pode ser um caminho de convencimento. Outro é o debate baseado no Jesus histórico, filho de um carpinteiro e de mãe cananeia (palestina). Isso implica em recuperar o ecumenismo da Teologia da Libertação e traçar alianças de base com esta militância pastoral, tanto na inserção social como na comunicação das redes.
Apontando conclusões: indo além do conceito rasteiro de “hegemonia”
Como venho repetindo em incontáveis oportunidades, o pensamento comum dentre a centro-esquerda e as esquerdas do país são atravessados de um equívoco sociológico derivado do marxismo vulgarizado. Neste, há uma crença espontânea – e logo espontaneísta – na “mobilização social em datas-chave” como redentora da luta de define asses. As datas-chave implicam em importante momento para as lutas pontuais, mas raras vezes passam a determinar um processo político. O que gera vitória ou derrota, além de momentos de ápice, são as estruturas permanentes e a organização social enraizada nos territórios.
Outra crença que beira o absurdo e é repetida à exaustão é compreender – ou desejar interpretando – que “a condição de existência determina a condição de consciência”. Esta perigosa bobagem pode operar como fantasia sociológica e ser determinante na arregimentação de jovens abstratos; mas, em nada incide sobre o sentimento religioso das maiorias e sequer opera o conceito de cultura de classe como um conjunto de significados, normas e hábitos do conflito social permanente. Temos uma sociedade complexa, mas razoavelmente homogênea em seus males e virtudes; logo, esta é organizável. Mas isso implica uma leitura de profundidade do Brasil e ir além do racismo científico disfarçado de “coerência teórica” ainda que a mesma não passe de “retórica discursiva”. Realmente é necessário questionar a teoria – com a máxima de firmeza ideológica e dúvidas teóricas – e não confundi-la com propaganda ou doutrina. Para tal, é preciso ir além dos desejos imaginários, trabalhando e organizando a partir do que somos, e não aquilo que nunca fomos.
24 de julho de 2017
Bruno Lima Rocha é cientista político e professor de relações internacionais