País esquece a própria estratégia bem-sucedida que enfrentou a indústria do tabaco e teima com o estúpido enfrentamento policial ao tráfico, matando corpos negros e espalhando violência nas periferias
Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora
Dava para cortar com faca o silêncio na pequena sala de hospital, onde homens grisalhos conjugavam ansiedade e esperança, à espera de exames cardíacos. No espaço de cadeiras estrategicamente confortáveis, a maioria permanecia de cabeça baixa, em contrição pelo diagnóstico sonhado. Até um senhor idoso, de camisa social amarela, sorrir para o paciente à sua frente: “Tudo bem no seu exame?”
“Até aqui, sim”, devolveu o interlocutor (um pouco) mais jovem, sentindo certo alívio pela cortesia. Chamado primeiro, o autor da pergunta se foi em direção ao tomógrafo e o outro interrompeu o passo apressado de uma das sorridentes enfermeiras, em busca de saber quem era o outro: “Doutor Jacob. Pessoa maravilhosa”, elogiou ela.
Ali, no hospital de privilegiados (todos brancos, previsivelmente), em posição inversa à ocupada por uma vida inteira, estava o cirurgião Jacob Kligerman, 84 anos, dos grandes especialistas do país em intervenções de cabeça e pescoço. Ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer, liderou, quarto de século atrás, cruzada que removeu as propagandas de cigarro da mídia brasileira. Milhares de vidas foram salvas pela pertinente vilanização do tabaco, que reduziu drasticamente o número de fumantes por aqui.
O médico teve influência decisiva na lei de autoria do então ministro da Saúde, José Serra, para banir os reclames e os patrocínios a eventos culturais e esportivos, que embrulhavam em imagem jovial as marcas de cigarro. Encerrou-se o tempo de Hollywood Rock, Free Jazz Festival e propagandas com músicas icônicas, estreladas por artistas populares. Pesquisas da época apontavam o crescimento do consumo entre jovens do produto, associado fortemente a câncer de pulmão (90% dos casos), enfisema pulmonar (80%), derrame cerebral (40%) e infarto do miocárdio (25%).
Apesar da montanha de evidências científicas, a batalha da proibição foi dura. A zilionária indústria do tabaco tinha bancada no Congresso (como a bala, a bíblia e o agronegócio hoje), que invocava a liberdade de expressão para manter os anúncios. “Esta questão envolve uma droga que mata. É no mínimo hipocrisia falar em democracia”, criticou Kligerman em entrevista ao colunista, em outubro de 2000. “Estávamos aqui em 1964 lutando contra a ditadura, e não vi ninguém do setor na rua, preso ou torturado, tampouco defendendo a liberdade de expressão”, continuou, evocando a participação no movimento estudantil sufocada pela repressão.
Na UNE, ficou amigo de Serra e, restabelecida a democracia, o assessorou no ministério, com inquebrável certeza. “Inglaterra, Noruega e Finlândia aprovaram leis restritivas e diminuíram em até 35% o consumo”, contabilizava, apontando a prevenção como melhor caminho contra o câncer. “O ministério para o qual trabalho é da Saúde, não da doença”.
Passou o tempo e a cruzada contra o tabagismo consolidou-se como raro momento civilizatório da sociedade brasileira, viciada em atrasos variados. Pesquisa da Anvisa de 2013 aferiu que 33% dos fumantes brasileiros abandonaram o vício com o fim da propaganda.