O caminho da miséria no território Xakriabá

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Por Joana Suarez com fotos de Flávio Tavares, compartilhado de Projeto Colabora – 

Indígenas lutam por sobrevivência e acesso à água em meio à aridez do sertão de Minas Gerais

São João das Missões (MG) – Passamos por cerca de 50 casas na Terra Indígena Xakriabá, em São João das Missões, no Norte de Minas Gerais. As famílias que encontramos convivem com a incerteza da comida na mesa todos os dias. A reserva fica a quase 700 km da capital Belo Horizonte, em uma região conhecida como “sertão mineiro”. No mês de setembro, a mata seca e o chão vermelho indicam o clima semiárido – cada dia mais árido. A falta de asfalto na BR–135 por 30 quilômetros antes de chegar na cidade apontam as primeiras ausências de ações governamentais por ali.




Para chegar nas aldeias, percorremos de 20 a 80 quilômetros pelas rotas de terra, após o centro de São João das Missões. Em um primeiro olhar, o que se vê é pobreza, fome, falta de água, carência de quase tudo em termos materiais. Semelhante a outras áreas pobres do Norte mineiro, do Vale do Jequitinhonha, com suas cidades distantes da capital e esquecidas pelas autoridades. Miséria que também é encontrada nos grandes centros urbanos, pois não é exclusividade do sertão brasileiro, que acaba sempre por retratar a dureza do país.

Mas é com um segundo olhar atento e escutando as pessoas que percebe-se, em meio a escassez, a força e a resistência contidas no território Xakriabá. Os cerca de 11 mil indígenas que vivem lá enfrentam dificuldades para sobreviver, principalmente, por causa do tratamento que recebem do governo brasileiro há muitos anos. O povo Xakriabá se mantém até os dias de hoje naquela mesma região com muita luta.

Nossos antepassados viviam na margem do rio. Estamos hoje nas áreas mais secas. Precisamos ampliar nossas terras para garantir o futuro do nosso povo, da nossa tradição e costumes

Domingos Nunes de Oliveira
Cacique Xakriabá

No passado, eles foram expulsos das terras mais próximas do Rio São Francisco e ficaram isolados, sem acesso à água e aos peixes. Hoje, sofrem também com os efeitos das mudanças climáticas, com tempos cada vez mais quentes e sem chuvas. E, para o futuro, os Xakriabá só têm a certeza de que continuarão lutando. No atual governo, não restam esperanças. “Vamos nos manter na luta, nosso povo é resistente. Se não fosse isso não existiriam mais indígenas no país, porque tudo hoje que vem do governo é vontade de acabar com a gente”, afirmou o cacique Domingos Nunes de Oliveira.

Confira todas as reportagens da Série Especial sobre a Terra Xakriabá

Disputa de 15 anos na Justiça

Atualmente, eles vivem em um espaço de aproximadamente 54 mil hectares dentro do município de São João das Missões, que um dia já foi chamado de São João dos Índios. Mas um documento, datado de 1728, concedeu aos Xakriabá o título de posse de 200 mil hectares de terras que beiravam a margem esquerda do rio São Francisco. Mas os fazendeiros, que chegaram à região atraídos por projetos agrícolas, ocuparam as áreas mais produtivas, desviando rios para irrigar suas terras.

O território que os indígenas ocupam hoje representa menos de um terço do original e estão afastados do maior recurso hídrico da região: o rio, que é também referência espiritual para eles. A luta para ampliar a demarcação em mais 43 mil hectares aguarda conclusão há mais de 15 anos. Essa ampliação alcançaria o rio São Francisco novamente, apesar de ainda ser metade das terras tradicionais Xakriabá.

Reserva indígena Xakriabá: território ocupado pelas aldeias, afastado do São Francisco, está cada vez mais seco (Foto: Flavio Tavares/Projeto Colabora)
Reserva indígena Xakriabá: território ocupado pelas aldeias, afastado do São Francisco, está cada vez mais seco (Foto: Flavio Tavares/Projeto Colabora)

O Ministério Público ajuizou Ação Civil Pública e, em 2014, a Funai foi condenada a terminar a revisão da terra, mas recorreu da decisão. O Poder Judiciário entendeu que a área demarcada atual é insuficiente para sobrevivência física e cultural. Em sentença de 2018, a Justiça Federal afirma que a Funai vem descumprindo sucessivamente os prazos regulares.

Refeições adequadas, alimentação de qualidade na dispensa: isso praticamente não existe aqui (nas aldeias)

Marcelo Caldas
Médico da Secretaria Nacional de Saúde Indígena

Procurada pela reportagem, a fundação informou que a revisão dos limites da Terra Xakriabá encontra-se na “fase chamada de delimitação”, depois passará por aprovação do Ministro da Justiça e futura homologação do Presidente da República. Não foram definidos prazos. É sabido, porém, que o presidente Jair Bolsonaro afirmou que em seu governo não haverá mais “nenhum centímetro de terra para índios”.

Confinados longe do rio

Os Xakriabá não conseguem mais pescar, caçar, plantar e colher como antigamente; perderam a autonomia alimentar ao serem confinados no território menor, sem a água do São Francisco. “Nossos antepassados viviam na margem do rio. Estamos hoje nas áreas mais secas. Precisamos ampliar nossas terras para garantir o futuro do nosso povo, da nossa tradição e costumes”, defende o cacique Domingos.

Quando o governo decide não demarcar terra indígena, a consequência é aumento da pobreza, da fome e das mortes de um povo que compreende o passado, o presente e o futuro do Brasil. A população Xakriabá cresceu de 4 mil para 11 mil habitantes dentro do mesmo espaço que eles estão hoje e não os comporta mais. Além de pequeno, o território vem ficando mais e mais seco, sem rio perene o ano todo.

A indígena Laurinha Gomes com seu fogão de lenha fora de casa: "não tem nada para comer aqui, só esse arroz mesmo" (Foto: Flávio Tavares)
A indígena Laurinha Gomes com seu fogão de lenha fora de casa: “não tem nada para comer aqui, só esse arroz mesmo” (Foto: Flávio Tavares)

Em outubro, um mês depois da primeira visita da reportagem na reserva, voltamos e visitamos Laurinha Gomes novamente. Ela cozinhava apenas arroz no fogo do chão e a casa se mantinha sem alimentos. “Não tem nada para comer aqui, só esse arroz mesmo”, disse ela, que havia mudado da casa de barro para um imóvel pré-moldado ao lado. A mãe dela morreu há dois anos, já não comia nada no fim da vida. “Ela morreu de fome, tomava soro, mas não adiantava”, contou Rogério Lopes, indígena Xakriabá que lembra ter carregado a mãe de Laurinha nos braços diversas vezes para o posto de saúde.

Marcelo Caldas, médico da Secretaria Nacional de Saúde Indígena, atua no município há seis anos e explica que a assistência social é acionada sempre que são identificados casos de pessoas que estão há mais de um dia sem comer nada. “Refeições adequadas, alimentação de qualidade na dispensa: isso praticamente não existe aqui (nas aldeias)”, afirma Caldas.

O médico arrisca dizer que cerca de 80% da população come somente o básico: arroz, feijão e uma mistura (carne). Rogério Lopes, que trabalha como motorista, aponta o drama das aldeias: “25% do povo não têm nada, porque é muito difícil desenvolver alguma coisa aqui”.

Eu alimento meus filhos primeiro e, se sobrar, eu como

Dulcineia Pereira dos Santos
Indígena Xakriabá e mãe de seis filhos

São João das Missões figura como o município com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Minas Gerais, com 0,529 (considerado baixo), e fica entre os 200 piores do Brasil, de acordo com o Censo de 2010, do IBGE. É preciso pontuar aqui que o conceito de desenvolvimento humano para os povos indígenas é diferente, pois eles acreditam na relação harmônica do homem com o meio ambiente mais do que em saneamento básico, por exemplo.

Dulcineia com seus seis filhos: sustento com R$ 600 do Bolsa Família e ajuda de parentes (Foto: Flávio Tavares)
Dulcineia com seus seis filhos: sustento com R$ 600 do Bolsa Família e ajuda de parentes (Foto: Flávio Tavares)

Desnutrição infantil

Uma parcela da população Xakriabá depende quase que exclusivamente do governo para sobreviver porque não tem emprego nem roça sustentável. Em São João das Missões, são em torno de 2 mil famílias beneficiadas do programa Bolsa Família, que recebem, em média, R$ 260 (uns mais, outros menos).

Quando chega de noite e eles (os filhos) pedem comida, aí eu choro

Dilma Gomes Gama
Indígena e mãe de sete filhos

Dulcinéia Pereira dos Santos, de 35 anos, cria sozinha seus seis filhos, pois separou-se do marido recentemente. Ela recebe R$ 600 do Bolsa Família para sustentar as crianças de 5 a 15 anos de idade. “É complicado mas a gente vai  sobrevivendo devagarzinho”. E muitas vezes esse dinheiro não dá para a comida do mês, aí os parentes ajudam. “Eu alimento meus filhos primeiro e, se sobrar, eu como”.

Mãe de sete, Dilma Gomes Gama, de 44 anos, também não recebe nenhuma ajuda do pai das crianças. “O bolsa família mal dá para pagar o que comer”, disse ela mostrando o último resto de arroz com feijão que tinha em casa. “Quando chega de noite e eles (os filhos) pedem comida, ai eu choro”. A filha de 16 anos estava grávida do primeiro bebê.

Joana, Israel e os seis filhos: menino só começou a falar com quatro anos de idade (Foto: Flávio Tavares)
Joana, Israel e os seis filhos: menino só começou a falar com quatro anos de idade (Foto: Flávio Tavares)

Muitas mulheres engravidam cedo e as famílias numerosas são comuns nas aldeias Xakriabá. Joana do Nascimento Gama tem 27 anos e é mãe de seis. “Estou querendo parar. Eles dão remédio (anticoncepcional) no posto, mas eu ainda não sei se devo”. O marido, Israel Nunes de Jesus, de 37 anos, está desempregado.

Antes, alguns homens conseguiam ir trabalhar na época de colheita, no corte de cana e em fazendas da região e da Bahia, mas até isso está difícil hoje em dia. Os Xakriabá também relatam que os fazendeiros queriam “escravizar” os índios pagando muito pouco colhendo para eles em “suas próprias terras”.  Um dos filhos de Joana, de 4 anos, tinha acabado de começar a falar. “A gente não levou no médico, deixei, e agora ele já está falando um pouquinho”, conta.

Na aldeia Caatinguinha, a pequena Adriele Cavalcanti Ferro, de 2 anos, foi diagnosticada como desnutrida grave. Ela pesa menos de 4 kg, mantém a estrutura de uma bebê de meses, sempre no colo da mãe. Os exames que ela fez no ano passado, quando ficou internada em Montes Claros (maior cidade, a 255 km da reserva), não concluíram as causas de ela não ter crescido e se desenvolvido, para além da desnutrição.

Leandra com Adriele, de dois anos, no colo: diagnóstico de desnutrição grave e problemas respiratórios (Foto: Flávio Tavares)
Leandra com Adriele, de dois anos, no colo: diagnóstico de desnutrição grave e problemas respiratórios (Foto: Flávio Tavares)

O pai – João Batista Seixas Ferro, de 27 anos, está desempregado – e a família vive em uma casa de barro. A poeira prejudica Adriele por causa dos problemas respiratórios. “A gente precisava também de um berço para ela”, disse a mãe, Leandra Cavalcanti, de 18 anos.  A menina, muito magrinha, dorme no colchão com os pais e a irmã de 3 anos.

A médica disse aos pais que a criança precisava ter uma alimentação mais regrada, fazer fisioterapia, e que o ideal seria que eles morassem na cidade. “Não tem jeito, não temos como pagar aluguel”. Independentemente do aspecto financeiro, os Xakriabá têm uma ligação muito forte com o território, com o lugar onde todos os seus familiares nasceram e cresceram.

O leite suplementar, Leandra pega no posto de saúde. A Funai fornecia cestas básicas, mas não chegou mais desde o começo de 2019. As frutas e legumes, ela consegue mais quando chove, o que é difícil.

Uma outra criança Xakriabá foi levada pela ONG Amigos de Minas para obter um diagnóstico em Belo Horizonte, por ser muito quieto e sem reação a nenhum estímulo. Achavam que o menino tinha autismo, mas o médico da capital disse que era desnutrição e raquitismo, que ele precisava de uma alimentação melhor.  “Infelizmente, ainda temos casos de desnutrição infantil. Algumas mães têm seis meses de gravidez e nem aparece a barriga direito”, afirmou Marcelo Caldas, médico da reserva indígena.

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