Via João Lopes –
Em 1980 o jornal Francês Le Monde convidou o filósofo Michel Foucault para uma entrevista. Ao saber do interesse do periódico, M. Foucault fez uma proposta inesperada. Faria a entrevista na condição de seu nome não ser divulgado. Assinaria como Filósofo Mascarado. Assim foi feito.
Na primeira pergunta para o tal Filósofo Mascarado, o jornalista perguntou-lhe o motivo do anonimato. Ele então respondeu:
“Você conhece a história desses psicólogos que tinham ido apresentar um pequeno filme-teste em um vilarejo nos confins da África. A seguir, eles pediram aos espectadores para relatar a história da forma como eles a haviam compreendido. Pais bem, dessa anedota com três personagens, apenas uma coisa lhes havia interessado: a passagem das sombras e das luzes através das árvores. Entre nós, os personagens impõem sua lei à percepção. Os olhos se lançam preferencialmente sobre as figuras que vão e vêm, surgem e desaparecem. Por que eu lhe sugeri que utilizássemos o anonimato? Pela nostalgia do tempo em que, sendo de fato desconhecido, o que eu dizia tinha algumas chances de ser ouvido. Com o leitor eventual, a superfície de contato era sem arestas. Os efeitos do livro surgiam em lugares inesperados e delineavam formas nas quais eu não havia pensado. O nome é uma facilidade. Vou propor uma brincadeira: a do “ano sem nome”. Durante um ano, os livros seriam editados sem o nome do autor. Os críticos teriam que se virar com uma produção inteiramente anônima. Mas devo estar sonhando, pois talvez eles nada tivessem a dizer: então todos os autores esperariam o ano seguinte para publicar seus livros…”
“O nome é uma facilidade”. Achei essa frase instigante. Por que devo debater um pensamento se posso chamar um autor de marxista, fascista ou pós-moderno e acabar com o assunto sem precisar usar os neurônios? É muito mais complexo debater com o Filosofo Mascarado que com o Michel Foucault.
O mesmo vale para as eleições. Por que eu precisaria ler o programa de governo de um candidato se posso chamá-lo de petralha ou comunista? Imagina se um candidato mascarado apresentasse a seguinte proposta para a educação:
– Democratizar as escolas ampliando a participação dos alunos, pais e profissionais de educação;
– Garantir uma educação integral com programas de esporte, arte e cultura nas escolas e creches;
– Criar um novo plano de carreira para melhorar os salários e as condições de trabalho dos profissionais da educação;
– Garantir autonomia pedagógica aos professores, valorizando os Projetos Políticos Pedagógicos elaborados por cada unidade escolar;
– Ampliar o numero de creches e garantir que tenha professor em todas as turmas;
– Garantir o acesso da comunidade escolar a equipamentos e instalações esportivas dos clubes de bairro;
-Oferecer educação especial na perspectiva inclusiva, mantendo escolas e classes especiais para os que necessitem de condições específicas de atendimento que impossibilitem a frequência em turmas regulares;
– Garantir que a comida servida nas escolas e creches seja livre de agrotóxicos e transgênicos.
Será que alguém seria contra? Obviamente que os métodos e a viabilidade de tal projeto poderiam ser colocados em questão. Mas haveria alguma comoção pública contra essas ideias? Certamente não. Os preconceitos são um refúgio, o nome uma facilidade. Diante deles, o pensamento, as ideias, o debate público, são irrelevantes.
Em outro momento, Foucault usou tais argumentos para justificar sua atitude: “estando o cenário intelectual sob o domínio da mídia. As estrelas prevalecendo sobre as ideias e o pensamento como tal não sendo mais reconhecido, o que se diz conta menos do que a personalidade daquele que fala. E mesmo esse tipo de crítica sobre o predomínio da mídia pode ser desvalorizado – pode inclusive alimentar aquilo que ele busca denunciar – se é proferido por alguém que, sem o querer. Já ocupa um lugar no sistema da mídia”.
Não estamos em 1980, porém o predomínio da mídia continua. As estrelas ainda prevalecem sobre as ideias. A imagem é mais valorizada que a ação. Ao propor que os livros fossem lançados sem assinatura, Foucault sabia que isso nunca aconteceria. Mas tal provocação ajudou e pensar os rumos do debate público francês. O Filósofo Mascarado nunca foi descoberto, a metodologia funcionou, não havia a possibilidade de rejeitá-lo pelo seu nome. Não havia refúgio.
Nas eleições isso também é impossível. Mas poderíamos fazer um exercício. Só restam dois candidatos, pq não ler as propostas destes, evitando as facilidades baratas de chamar um de maconheiro defensor de bandido e o outro de pastor reacionário? As facilidades enganam, aprisionam. Nossa cidadania não será construída com subterfúgios. Apenas o debate maduro de ideias pode nos tirar da crise.
Imagens são construídas com Marketing e destruídas com boatos. A democracia, pelo contrário, com a divergência de ideias. Daremos um salto democrático quando os marqueteiros deixarem de ser a figura mais importante nas campanhas.
Não precisamos de um candidato mascarado para isso, basta um eleitor menos preconceituoso.
Por Eduardo Migowski