O ‘Cangaço Novo’ de Dinorah e todas as formas de ver o Nordeste

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Essa crônica é dedicada, in memoriam, ao amigo querido Jr. Black, ator nesta série

Por Xico Sá, compartilhado de Diário do Nordeste




cangaço novo

O bicho tá pegando em Cratará, cidade cearense fictícia da série “Cangaço Novo”, onde Vaqueiro é sina e sobrenome como em uma peça de Sam Shepard, um esquisito caubói lá do Illinois, vê se pode! Sucesso absoluto no Prime Video. Cratará, quase meu Crato de nascença, quase meu Cariri no futuro indicativo.

Na direção, o baiano Aly Muritiba e o paulista Fábio Mendonça. É um pipoco no serviço de streaming. Adrenalina no talo. Cenas de ação, brutalidades ao estilo dos bandoleiros originais e, é bom que se diga, fragmentos de delicadeza que nos remete a uma antologia dos melhores momentos do cinema do Nordeste brasileiro.

Aqui dou cartaz, em uma linhagem de possíveis influências e citações, a filmes como “Baile Perfumado” (Paulo Caldas e Lírio Ferreira), “Sertânia” (Geraldo Sarno), a caatinga nevada de “Cinema, Aspirina e Urubus” (Marcelo Gomes), a épica do “Bacurau” (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles) e visagens gerais de Glauber Rocha captadas por um drone-carcará que sobrevoa a terra do sol como um Deus narrador onisciente.

Criada por Mariana Bardan e Eduardo Melo, a série funde — na transição do preto & branco ao colorido — o velho e o novo movimento histórico que há entre Amaro (pai) e Ubaldo Vaqueiro, o filho que volta de São Paulo e retoma, talvez condenado à sina, a ideia de um “banditismo social” que se espelha na imagem popular de Lampião e do seu bando.

Repare como o personagem do excelente ator pernambucano Allan Souza Lima — agora melhor do que nunca — joga dinheiro para o povo, durante o assalto a um banco. Aqui a simbologia vai além do troco e da troca, talvez para realçar a lenda do viés Robin Hood de Virgulino Ferreira. Essa imagem romântica, porém, é mais verdadeira no caso de Jesuíno Brilhante (1844-1879), que reinou no Rio Grande do Norte bem antes do rei do cangaço velho.

Observe também como Dinorah, interpretada por uma possuída e genial atriz potiguar de batismo Alice Carvalho, inventa e reinventa um lugar para as mulheres em um bando de macho latino/nordestino nunca dantes imaginado nem mesmo por Maria Bonita e Dadá — companheira de Corisco, a única cangaceira que sabia atirar. A personagem também ultrapassa figuras da ficção como Maria Moura, a fora-da-lei criada por Raquel de Queiroz que, pasme!, foi inspirada na personalidade da Rainha Elizabeth (1533-1603), só para se ter uma ideia de que no sertão dos viventes destemidos cabe de um tudo.

A interpretação de Alice cria uma bandoleira mitológica, invocada qual Bonnie Parker (da dupla fumegante do pistoleiro Clyde) na “era dos inimigos públicos”, fincando as botas na estrada como quem assanha ressentimento e destino. Ela é o próprio cipó de aroeira, caríssimo Geraldo Vandré, no lombo de quem mandou dar. Toma!

Dilvânia (na pele da mineira Thainá Duarte) completa o trio de irmãos da trama. Muda e afortunada em subjetividades como a Belonísia do romance “Torto Arado” de Itamar Vieira Júnior. Um mundo de silêncios, ancestralidades, orações, elipses, altares, dizeres que só não escuta quem vive na bestança e da leseira por escolha. Sabiá (sábio ator Adélio Lima) que me sopra isso agora.

Raios da silibrina! É tanta sabedoria, ave, sangue, munganga e marmota nessa série, que me comove e também desnorteia. Comove e intriga, pois é sempre bom pensar também como produto de uma certa e potente indústria — a gente tá dentro dela e, epa, às vezes esquece do feitiço. No que invoco, e sempre fico curioso para saber o que ele pensa, Durval Muniz de Albuquerque Jr., autor do clássico “A Invenção do Nordeste”, meu colega de jornal e debate permanente sobre as ficções e as histórias universais de glorias e infâmias nordestinas.

O historiador meteu a baladeira (ou estilingue), em artigo aqui neste Diário: “Mas o aspecto mais lamentável desse Cangaço Novo, que já nasce velho, é a reprodução de uma visão eugenista e naturalista do fenômeno do cangaço”.

Eita! Segue Durval: “Em Cangaço Novo se dá uma indisfarçável centralidade ao argumento da descendência, do sangue, da hereditariedade, para explicar os comportamentos e atitudes dos personagens. Embora vejamos falas em que os personagens associam seu comportamento criminoso à revolta contra as injustiças sociais, como sendo resultado das estruturas sociais, econômicas e de poder iníquas, da violência física e simbólica representadas pela forma como está organizada a sociedade local, a motivação central do comportamento tanto de Ubaldo, como de suas irmãs, uma dedicada ao crime e a outra dedicada a dirigir uma irmandade, que presta uma espécie de culto messiânico a memória do cangaceiro morto, é a descendência biológica, são os laços de sangue, a hereditariedade”.

Fica o trecho do professor para jogar a batata doce nas cinzas da fogueira da boa e saudável polêmica, isso é sempre muito bonito e necessário. Mas não termino sem antes louvar as atuações da paraibana Marcélia Cartaxo (de Cajazeiras para o mundo, a atriz brasileira que mais amo desde “A hora da estrela”) e da pernambucana Hermila Guedes, que pontua o drama cubando os mistérios do planeta.

Estou ligado no “Cangaço Novo”, inclusive nos problemas que o velho “Norte” sempre traz para as novíssimas reflexões do “Sul Maravilha”. Pega fogo, cabaré das contradições (dialéticas) mais interessantes. E solta na vitrola Nação Zumbi (um homem roubado nunca se engana) e a seresta de Fagner. Que trilha.

É entretenimento, mas nunca é só isso. Como diz o senador pai do prefeito de Cratará, no seu lugar de bala e de fala, é sempre política, mesmo quando parece que se trata apenas de uma guerra. Segunda temporada já, pela alma penada de todos os vaqueiros e seus aboios doloridos na santa missa de Serrita.

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