O caso Juscelino: como a ditadura militar tratou as denúncias de corrupção contra JK

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Por Diego, Knack, História da Ditadura – 

“Ford hoje perdoou Nixon, todos os seus erros ou crimes. Ficou livre mais depressa do que eu. Continuo ainda preso à CGI. Não haveria uma vitamina para esses verdugos?”, anotou o ex-presidente Juscelino Kubitschek em seu diário.[1] Era 8 de setembro de 1974, data em que o então presidente dos Estados Unidos, Gerald Ford, perdoou publicamente Richard Nixon, que renunciara ao cargo um mês antes devido à denúncia de sua participação no caso Watergate. Naquele país, o perdão presidencial livrou Nixon dos constrangimentos legais que poderia sofrer após seu afastamento. No caso de JK, a história seria outra.




Na época em que escreveu, Juscelino também sofria uma investigação. Foi acusado de enriquecer ilicitamente. A Comissão Geral de Investigações (CGI), que ele mencionou em suas notas pessoais, foi uma espécie de tribunal especial criado após o AI-5 sob o pretexto de combater crimes de corrupção por meio do confisco de bens. Em tempos que o vocabulário político nacional vive repleto das referências ao escândalo do dia, um olhar aproximado ao processo que a CGI moveu contra JK serve como ferramenta para reflexão, sobre ontem e sobre hoje; para que vejamos além de “lava-jato”, “mensalão”, “privataria” ou “trensalão”. Na época em que Juscelino era presidente, as acusações de irregularidades foram, sobretudo, voltadas à construção da nova capital, Brasília. Após 1964, todas elas foram minunciosamente relembradas.

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O PROCESSO CONTRA JUSCELINO KUBITSCHEK

 Juscelino foi primeiramente investigado pela ditadura ainda em 1964. O órgão responsável pelas diligências era a CGI, Comissão Geral de Investigação, que havia sido criada pelo artigo sétimo do ato institucional de 9 de abril de 1964 e, cujo comando, ficaria nas mãos do almirante Paulo Bosísio. Essa primeira CGI agregou as investigações sumárias sobre “subversão” e “corrupção”, convertidas nos Inquéritos Policiais-Militares (IPMs) logo após o golpe. Como se sabe, JK teria seu mandato cassado. Na iminência de ser punido, buscou se defender no Senado: “Perante Deus, perante o povo, diante desta casa, posso afirmar que como Presidente da República, durante cinco anos zelei pela paz no Brasil, não autorizando, não permitindo, não pactuando com qualquer atentado à liberdade de quem quer que fosse, e agindo sempre com dignidade administrativa”. De nada adiantou. JK seria diversas vezes convocado para prestar depoimento sobre sua trajetória política e sobre a origem de seus bens. Sob constante ameaça de prisão, terminou no exílio em Portugal e, quando voltou ao Brasil, sofreu um longo período de privações até sua misteriosa morte em um acidente de carro, no ano de 1976.

Após sua cassação, o processo contra Juscelino foi suspenso, mas não abandonado. JK era alvo de desconfianças dos militares mais radicais por seu suposto envolvimento em falcatruas e por ter sido um dos principais líderes do Partido Social Democrático (PSD) o partido “das raposas”, associado ao fisiologismo político. As punições satisfaziam os grupos que viam nessas medidas uma forma de honrar a “revolução”, para findar com o comunismo e proporcionar uma “renovação dos costumes políticos”. A suspensão das cassações de mandatos e direitos políticos, prevista pelo parágrafo único do décimo artigo do AI-1 abriu uma grave crise no governo Castelo Branco. Logo surgiram grupos militares que passaram a fazer oposição ao Planalto. A “linha dura” que se formava, e que ganhou força a partir de então, se via declarava frustrada por tais limitações. Somente em 1968, já com os “duros” na direção do governo, a retomada do processo contra JK foi possível. O AI-5, adotado no dia 13 de dezembro de 1968, em seu oitavo artigo, criava uma segunda CGI, diferente daquela dos IPMs. Essa teve o papel específico de proporcionar investigações que gerassem o confisco de bens dos acusados. Na sessão do Conselho de Segurança Nacional que aprovou o ato, Jarbas Passarinho, então Ministro do Trabalho do governo Costa e Silva, comemorou a novidade da CGI. Isso porque o novo órgão dava o “ônus da prova” ao investigado, em uma espécie de inversão da lógica dos processos judiciais convencionais. Não era mais o caso de a justiça provar que o suposto inocente era, em verdade, culpado; mas, o suposto culpado que deveria provar ao tribunal que não tinha responsabilidade perante as acusações. Foi nesse novo contexto que, meses após a criação da CGI, o processo contra JK foi retomado.

As acusações contra grandes figuras políticas do regime anterior foram o carro-chefe desse momento inicial da CGI. Outro ex-presidente, João Goulart, foi o primeiro investigado. Na ata que registrou esse fato, o funcionário da CGI chegou a grafar o nome de Jango, e somente o dele, em letras maiúsculas, em gesto que parece refletir a vontade de destacar a ação inaugural do novo órgão. Outros políticos do pré-64 foram também alvo do crivo militar. Leonel Brizola, Ulysses Guimarães e uma série de governadores, de deputados federais e estaduais. A CGI se dizia secreta e de procedimentos isentos. Na prática, não investigava com mesmo afinco acusados que tinham afinidade política com o governo. Ao mesmo tempo, apenas autorizava a divulgação pela imprensa, então censurada, das investigações que reiterassem uma imagem de um governo que combatia “com firmeza” o problema.

O caso JK foi iniciado por um elenco numeroso de pedidos pela sua cassação e insinuações de seu envolvimento com corruptos e comunistas. Há, nos autos do processo, por exemplo, um telegrama do general Leônidas Pires encaminhando pedidos de cassação de Juscelino, que haviam sido redigidos por Carlos Lacerda. Outro peça do processo é o recorte de um jornal comunista, que anunciara o apoio a Juscelino Kubitschek nas eleições de 1955. Como resultado disso, a CGI votou pelo bloqueio de seus bens ainda em junho de 1969. Menos de um mês depois, JK pediu vista do processo.

Como mencionei, a CGI atuava em segredo. Até aquele momento, tudo o que o ex-presidente sabia era que estava sendo alvo de uma investigação. Em face desse cenário, JK entraria com um recurso junto ao Supremo Tribunal Federal; entretanto, em tempos de exceção, a justiça convencional não funcionaria para ele. O acervo de acusações contra Juscelino é um dos maiores da CGI e compõe um conjunto de mais de onze anexos. Trata-se de uma espécie de reprodução de todos os apontamentos promovidos pela oposição ao longo de sua vida política desde os tempos em que fora prefeito de Belo Horizonte. Os principais casos foram: o do feijão podre, acusações ligadas à construção de Brasília, o escândalo do IRB e o caso Mayrink Veiga. Nesses processos, Juscelino seria acusado de ter adquirido de forma irregular diversos bens, como, por exemplo, um prédio ou a casa, que supostamente recebera como um “presente” oferecido pela mesma construtora, que fora responsável pelas obras da Ponte da Amizade, entre Brasil e Paraguai, durante sua presidência.

Kubitschek buscou se defender com uma breve peça. Acusou o tribunal de cercear seu direito de defesa e justificou seu patrimônio como fruto de uma longa vida pública em que teria recebido, em diversas ocasiões, doações as mais diversas. Como resposta, a CGI apontou em seu relatório “rendimentos insuficientes para acréscimo patrimonial, começando nos tempos da prefeitura de Belo Horizonte” e, ponderou que a “maior parte das alegações vem desacompanhada de documentação”, além da presença de “discrepâncias e omissões”.

A CGI não levou em consideração, por exemplo, o curto prazo dado ao ex-presidente para se defender. Tampouco o fato de que desconhecia a peça completa de acusação, que foi mantida secreta pela CGI. No entanto, o parecer foi categórico: confisco. Nas idas e vindas a quartéis para depor, que foram registradas pela grande imprensa daquele tempo, JK teve sua imagem desgastada. Aos poucos, viu seu prestígio político se esvair em meio a tantas acusações. Sentia-se pior do que Nixon.

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JK: ONTEM E HOJE

Consta que Geisel teria pessoalmente impedido o confisco dos bens de Juscelino. O depoimento é de Armando Falcão, que fora ministro de JK e chefiava a pasta da Justiça na época em que a investigação chegou ao final, por volta de dezembro de 1975. Segundo ele, Geisel sustentou “não ser necessário punir Juscelino de novo”. Já se pensava em abertura política e é muito provável que o general-presidente tenha entendido que a punição de JK seria mal recebida pela opinião pública ou mesmo por alguns dos políticos que auxiliavam o governo na tarefa de manutenção da ditadura. Outra hipótese é a de que Geisel avaliou que confiscar os bens de Juscelino certamente prestigiaria os mais radicais, defensores da prorrogação das punições baseadas no AI-5.

Do ponto de vista da memória do ex-presidente, as denúncias de corrupção acabaram ofuscadas. Em parte, porque nada ficou comprovado. Basta conferir os livros com relatos e memórias sobre Juscelino. Ele é o homem que construiu Brasília, o “presidente Bossa Nova”. Não aquele que se enriqueceu às custas de uma nova capital. Essa luta, JK venceu. Por outro lado, mesmo sem o confisco, Juscelino sofreu uma derrota evidente. A ditadura o retirou da política nacional em doses tão lentas quanto efetivas. E o processo da CGI esteve fortemente relacionado a isso. Isso porque era justamente essa uma das funções da Comissão sigilosa: inviabilizar politicamente os inimigos do regime. Em meados dos anos de 1970, o JK que aparecia na imprensa era um homem deprimido e que se via obrigado a frequentar quartéis para depor sobre acusações as mais variadas.

Sobre a CGI e o combate à corrupção proporcionado pela ditadura sabemos que foi ineficaz. Se a intenção era sincera, pode-se dizer que falhou. Em seus relatórios de anos mais tarde, seus membros a classificaram como um espantalho, que só tinha valor pelo assombro que causava. Foi “um conúbio de tribunal do santo ofício com um cartório do interior”, segundo a revista Veja. Ou, para o ex-presidente Ernesto Geisel, era inócua, conforme declarou em entrevista à FGV em meados dos anos 1990. A Comissão puniu mesmo poucos e impôs as penas mais duras aos pequenos casos de irregularidades em prefeituras do interior do país.

Hoje, época em que o caso de JK parece distante – embora familiar – persevera o lugar comum que afirma serem os políticos corruptos; ou de que a política é toda corrupta. Ideia que parece ser confirmada diariamente por toda a grande mídia do país, que empresta voz à enxurrada de denúncias, que, comumente, se justifica por meio de um argumento propriamente “histórico”: o país se construiu com base em um regime que não soube separar o que é público, do que é privado.

Nesse sentido, pouco haveria a ser feito: estamos fadados aos corruptos. É assim, porque sempre foi. Essa chave interpretativa carrega consigo, todavia, um perigoso desdobramento: a descrença no sistema político e o afastamento dos cidadãos das decisões coletivas no âmbito do Estado. A fala moralista contra o “mal da corrupção” já serviu à manutenção de uma ditadura. Atualmente, atende aos interesses de grupos, que disputam espaços na política nacional, por meio da mobilização do discurso moralizador. Corruptos seriam apenas os seus adversários. Enquanto isso, ainda há muito a se fazer para, de fato, tornar a república – com a licença para a repetição do sentido – uma coisa pública.

Diego Knack  é historiador e professor de História.

PARA SABER MAIS:

ARQUIVO NACIONAL. Coordenadoria de Documentos Escritos. Fundo do Conselho de Segurança Nacional – CGI. Processo de Juscelino Kubitschek de Oliveira. Cx. 282.

D´ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso. Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1994.

FALCÃO, Armando. Tudo a declarar. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.

FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.

KNACK, Diego. O combate à corrupção durante a ditadura militar por meio da Comissão Geral de Investigações. (1968-1978). Dissertação de Mestrado. Orientador: Carlos Fico. Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.

[1]JUNIOR, Policarpo. A trincheira da escrita. Revista Veja, 14 de maio de 1997. p.115.

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